Órfão de mãe e filho de pai incógnito, Francisco Nobre tinha 19 anos quando se alistou no exército português, a única saída que encontrou para fugir à pobreza extrema em que vivia. Acabou a combater nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e regressou com traumas, vícios e problemas de saúde para morrer aos 26 anos. «Foi uma vida miserável do princípio ao fim», conta o bisneto Jorge Vaz Gomes, que está a produzir um documentário sobre o “Soldado Nobre”.
Era janeiro de 1916 quando Francisco Nobre se alistou no Regimento de Infantaria 12 da Guarda. Ia à procura de uma vida melhor, de um sítio onde tivesse dormida e comida. Mas os planos saíram-lhe furados e em março de 1917 é enviado para o norte de França para combater o exército alemão. Esteve cerca de «sete a oito meses nas trincheiras, sem guarnição», conta o bisneto e realizador Jorge Vaz Gomes.
Sobreviveu à duríssima Batalha de La Lys, considerada uma das piores derrotas militares de Portugal, e regressou à terra natal – Alfaiates (Sabugal) – em novembro de 1918, pouco antes de ter sido assinado o armistício. Mas em estado lastimável: «Tinha pesadelos à noite e escondia-se debaixo da cama com ataques de falta de ar. A memória, o trauma e os problemas respiratórios misturavam-se e teciam aquilo que terá sido a sua personalidade», descreve o descendente, que está a realizar um documentário sobre o bisavô. Chegado da guerra, Francisco Nobre tinha uma pensão e acabou por casar, tendo sido pai de duas filhas. Mas a relação com a mulher não foi pera doce: «Ele bebia muito e era violento com a minha bisavó», adianta Jorge Vaz Gomes, recordando que um tio lhe contou nunca ter ligado muito à memória do bisavô «precisamente porque tinha esta ideia de que ele era violento».
O casamento durou pouco e a bisavó do realizador ficou viúva mais cedo do que esperava. Nas trincheiras, Francisco e os seus companheiros do Regimento 12 foram atacados com gás pelos alemães e, de junho a novembro de 1918, esteve de baixa, «ou internado ou sem capacidade para voltar ao combate», diz Jorge Vaz Gomes com base na informação que consta na ficha de Francisco Nobre. Terá sido esse ataque que lhe deixou marcas profundas e que, mais tarde, se revelou a causa da sua morte. «Foi uma vida miserável do princípio ao fim», lamenta o bisneto, que não sabe como foram os primeiros anos de vida do bisavô. O que conseguiu apurar é que «ele sabia ler, escrever e contar corretamente». Mas nas fichas estão ainda registos de insubordinações, porque «faltava aos trabalhos ou revoltava-se», e isso valeu-lhe uma despromoção.
Inspirado por esta história trágica, Jorge Vaz Gomes começou a investigar e está a trabalhar num documentário sobre a vida e passagem do bisavô pela Primeira Guerra Mundial. A sua principal dificuldade tornou-se na estrutura do filme. «Quando se faz um filme sobre alguém, a primeira coisa a fazer é arranjar uma imagem da pessoa», explicou o realizador de 37 anos, natural da Guarda. Mas a procura pela fotografia «estava a ser realmente problemática», confessa o realizador, que acabou por perceber que «essa busca pela cara dele era uma metáfora» para a pesquisa que estava a fazer. Com a ajuda de uma tia, residente em Alfaiates e que faleceu recentemente, conseguiu a fotografia de grupo de vários soldados do concelho do Sabugal, onde estaria o seu bisavô. «Não há ninguém vivo que o tenha conhecido, por isso ninguém o consegue identificar naquela imagem», lamenta.
Contudo, esta fotografia é o fio condutor do filme e é em torno dela que é feita toda a investigação. «No filme há a busca que eu faço para ver qual deles é que tem a cicatriz no maxilar. Há também algumas entrevistas com pessoas de Alfaiates que tentam identificar o meu bisavô na imagem e não conseguem», adiantou o realizador, segundo o qual há ainda algumas «histórias antigas que eu recolhi na aldeia através de uma senhora que viu os soldados partirem» para a guerra. A relação com Alfaiates, essa, continua a existir e o realizador não descarta a possibilidade de fazer mais algumas entrevistas na terra natal do bisavô. Da infância e adolescência vividas na Guarda recorda os tempos em que passava pelo monumento aos mortos da Iª Guerra Mundial, no Jardim José de Lemos, com alguma nostalgia: «Nunca pensei que aquilo pudesse ter tanto a ver comigo e com a minha história», admite.
Um soldado Nobre, mas que não foi herói
Há quem diga que dos fracos não reza a história, mas Francisco Nobre e outros soldados como ele deram o corpo, a alma e, muitos, a vida, e «nem sequer são notas de rodapé», lamenta Jorge Vaz Gomes, para quem o bisavô não ficou na história por não ter feito «nada de heroico». «É triste que fiquem só os nomes dos generais ou dos heróis. Mas todos estes homens, que foram carne para canhão, desaparecem completamente da história e da memória», queixa-se o realizador, que pretende «fazer uma espécie de homenagem poética» à vida desse soldado raso e ao que ele passou. «Esquecemos demasiado a Grande Guerra e as pessoas que lá participaram. É preciso darmos-lhes mais atenção e também perceber quem foram estas pessoas e porque lá andaram», considera.
O documentário intitula-se “Soldado Nobre”, mas o título não foi escolhido ao acaso: «Na altura chamavam o soldado pelo último nome», responde o realizador, que não esconde que Nobre tem um sentido ambíguo. «A primeira leitura que quem não conhece a história pode fazer é que “Soldado Nobre” fala da história de um soldado que praticou atos de nobreza, mas depois vão descobrir que é só o nome dele», diz, entre risos. A versão curta do filme vai ser apresentada este sábado, em Neuve-Chapelle, no norte de França, durante as comemorações da Associação Memória Viva do centenário da participação portuguesa na Primeira Guerra. Por lá, «quero filmar os sítios onde o regimento dele esteve e falar com algumas pessoas», revela Jorge Vaz Gomes. O único material de arquivo que usa é a fotografia de grupo e as fichas militares do antepassado, tudo o resto é filmado no presente.
Sara Guterres