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Beira serrana… e raiana

Theatrum Mundi

As paredes e os armários da escola Augusto Gil estavam cheios de mapas. Havia mapas mundi com os países representados a cores diferentes; havia mapas das províncias ultramarinas que continuaram por ali, impávidos à passagem das revoluções, ignorantes da ‘vontade’ de autodeterminação dos povos; havia mapas das ‘ilhas adjacentes’ (era ainda a denominação utilizada por finais dos anos setenta); havia os inevitáveis mapas das serras, umas encarrapitadas nas outras de acordo com a sua altitude e com a Estrela a encimar a carambola. Também havia, claro, mapas do Portugal continental. Nestes, os distritos administrativos ‘retalhavam’ o território nacional para depois serem regrupados, em geral de dois em dois, nas chamadas regiões naturais. ‘Guarda’ era nome de cidade—a mais alta, por sinal—mas também de distrito, de tal forma que muitas vezes me cruzei com gentes, no país e no estrangeiro, que se diziam da Guarda e que só depois precisavam qual o ponto do distrito de que provinham. (Vem-me à memória como as partículas de giz levantavam vôo em contacto com o quadro preto e se concentravam nestes mapas e como cada vez que os percorria com os dedos, numa vertigem de viagens imaginárias, quase sufocava.)

Com a ajuda destes mapas, aprendemos eu e os meus colegas que existiam três Beiras, a Alta, a Baixa e a Litoral, aprendemos as cidades de cada uma, os seus rios, os seus recursos naturais e as actividades económicas. Ainda me lembro de pensar como os distritos da Guarda e de Viseu, lado a lado, formavam uma espécie de duplo V apoiado nos cumes da serra da Estrela e que representavam o prolongamento natural um do outro. Em certo sentido, a Beira Alta é herdeira da escola de geografia de Orlando Ribeiro e de uma certa forma de olhar para o país político através das continuidades e descontinuidades do espaço físico. Contudo, o país político é mais do que isso e os últimos vinte anos provam-no à saciedade. Entre a Guarda e Viseu a ruptura tem sido crescente e os sucessivos projectos de regionalização têm vindo a consolidar a necessidade de uma solução política mais serrana e mais raiana.

A vontade dos dirigentes políticos e a vontade popular vão andando desencontradas também em matéria de regionalização, com a agravante de há cinco anos o tema ter servido de arma de arremesso contra o governo socialista. No processo, foram levantados problemas e alternativas relevantes, mas o propósito geral (como se viu claramente na campanha para o referendo…) foi o de mobilizar todas as resistências e reacções possíveis contra o que aparecia como um projecto de modernização dirigido por ‘outros’. À mistura, o discurso da ‘divisão de Portugal’ serviu para cimentar, por todo o lado, o sentimento pacóvio de que ‘o que está, está muito bem, e além disso é de inspiração divina.’ E ninguém quer ser responsável pela divisão de Portugal, não é?

A comunidade urbana que se anuncia e que se desenvolve à volta da serra da Estrela, para além de uma boa notícia, vem mostrar que a regionalização é imparável. Pode não ser a solução para todos os problemas da Guarda, pode suscitar apreensões quanto ao seu funcionamento, mas é da responsabilidade de todos que se torne um instrumento de desenvolvimento regional… como em Espanha, talvez? E poderá fazer com que os dirigentes políticos abandonem a guerrilha e se concentrem no essencial… em projectos mobilizadores? No entretanto, cinco anos se perderam…

Agora, vamos a caminho da definição de uma nova Beira, e a Guarda e os seus dirigentes têm de assumir o papel central na mobilização dos concelhos do distrito para o projecto. Seia, Gouveia e Fornos são essenciais para a coesão da nova região e reforçam a identidade serrana. Foz Côa, Figueira, Pinhel e o Sabugal complementam-na reforçando a sua identidade raiana.

Por: Marcos Farias Ferreira

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