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Asno, jumento e jerico

Observatório de Ornitorrincos

A semana passada escreveu-se nesta coluna que o poeta Mário de Sá-Carneiro se matou com um tiro de pistola. (Repare-se como se recorre na frase anterior ao pronome impessoal em vez da habitual narcísica primeira pessoa do singular, para afastar do leitor a ideia da personalização do erro.) Qualquer pessoa com vagos conhecimentos de história, literatura e regras do dominó sabe que o poeta se suicidou com arseniato de estricnina, como bem fui advertido por voz amiga. E de acordo com a Wikipedia bebeu disso cinco frascos.

Já que o autor desta coluna gosta de se armar aos cucos com citações, lembre-se o leitor que Mário de Sá-Carneiro escreveu estas linhas sobre as suas cerimónias fúnebres: “Quando eu morrer batam em latas (…) A um morto nada se recusa, / Eu quero por força ir de burro.” Se quem escreve esta semanada pudesse ir à TVI falar com mortos, devia convocar Mário de Sá-Carneiro e dizer-lhe, perante todo o país, usando uma citação (mais uma) do grande poeta contemporâneo Luiz Felipe Scolari: “E esse burro, senhor Mário, o burro sou eu!” (Note-se como o autor distorce para a afirmativa, e apenas por sua conveniência, uma frase que foi proferida na forma interrogativa. Esta coluna começa a demonstrar mudanças de critério na relação com a verdade. Agora tem mais.) (E já agora, aperceba-se do uso de parêntesis a torto e a direito, por tudo e por nada, por dá cá aquela palha, porque sim e porque não, apenas para ocupar mais espaço e não precisar de desenvolver os temas que realmente interessam ao trio de leitores que ainda resta.) (E veja-se o truque ainda mais baixo de repetir na nota anterior várias expressões com o mesmo significado com o objectivo sombrio de ocupar mais duas linhas. O que uma pessoa faz para não ter de discutir temas candentes e complicados como a compra de submarinos, o líder do PSD ou o fim da FHM.)

Não consigo explicar onde estava com a cabeça quando escrevi que Sá-Carneiro dera um tiro nos parietais, mas provavelmente estava num estado tão lastimável como uma cabeça após ser alvejada. Menos sangue na camisa, é certo, mas a mesma corrente de ar a atravessar o crânio. Nesta maré de confissões, devo acrescentar que desconheço se Fernando Pessoa teve ou não intimidades com Ofélia. E também não faço ideia se tinha ciúmes das visitas que Álvaro de Campos fazia à sua menina ou se ficava irritado com os piropos javardos de Alberto Caeiro. Mas desconfio que um homem que escreve “Quando passo um dia inteiro / Sem ver o meu amorzinho / Cobre-me um frio de Janeiro / No Junho do meu carinho” merece certamente uma referência nos livros do Harold Bloom, mas terá mais dificuldade em ter o leito aquecido à hora de deitar. No entanto, não devemos, ainda que nenhuma referência exista na Wikipedia, excluir a hipótese de Ofélia ser uma refinada badalhoca e apreciar gang-bangs com os heterónimos de Pessoa. (O autor pede desculpa por mais um parêntese e por utilizar na última frase dois termos específicos de um campo artístico muito circunscrito a uma pequena comunidade de apreciadores, a pornografia.)

Winston Churchill disse que a sua educação apenas foi interrompida pela escola (ou escreveu, não sei, mas também faz pouca diferença porque é aconselhável o leitor confirmar todas as informações aqui apresentadas). Obviamente, a educação dos leitores deste jornal é apenas interrompida quando passa os olhos por esta coluna.

Para terminar este texto quero apresentar ao leitor uma outra frase de Churchill encontrada num livro de citações, que é uma clara referência ao Observatório de Ornitorrincos e ao menino que o escreve: “É bom para as pessoas pouco educadas lerem livros de citações.”

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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Está desculpado.
 

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