Em entrevista a O INTERIOR, o diretor clínico da Unidade Local de Saúde (ULS) da Guarda revelou que a decisão da localização de serviços de Radioterapia e Medicina Nuclear na região é «um processo que se vai gastar com “faits divers” e discussão política e social». Para Gil Barreiros, ainda há um «longo caminho a percorrer» mas que a sua instalação no Fundão já é irreversível, pois os políticos «andaram distraídos». O médico falou também sobre as dificuldades em atrair médicos para o distrito.
P – Como está a Saúde no distrito da Guarda? Quais são as principais carências?
R – Continua a ser uma saúde com problemas, não vamos “meter a cabeça na areia”. É evidente que, com todas as carências que o interior do país tem, nós não fugimos à regra. Temos deficiências em pessoal, estruturas e meios. A saúde é uma tarefa inacabada, nunca está completa. O grande problema neste momento é a carência de pessoal, nomeadamente de técnicos médicos. A região não tem conseguido ser atrativa, não temos tido as ajudas que devíamos ter. O interior é carenciado mas tem gente, que tem os mesmos direitos da que está à beira mar. Não tem havido políticas de descriminação positiva para o interior que façam com que as pessoas se fixem aqui.
P – Como se pode alterar essa situação?
R – Continuamos com dificuldades de acessibilidades e com falta de atratividade e de bens essenciais que existem no litoral, a nível cultural, bem como outros aspetos que fazem parte da vida da população. Quando se coloca a hipótese de ficar num sítio onde há tudo e ficar noutro onde ainda não existe tudo, as pessoas não optam por este último. Para além das políticas de fundo, que deviam privilegiar o interior, era necessário quase obrigar as pessoas a virem para o interior. Já que o Estado oferece emprego, não entendo como se abrem vagas para especialidades médicas no interior ao mesmo nível do litoral. Enquanto esta situação existir os nossos concursos ficam sistematicamente desertos.
P – O que pode fazer a administração da ULS para alterar este regime…
R – Administrativamente podemos fazer muito pouco, não temos poder para fazer muito. Não somos nós que abrimos concursos nem criamos essas situações. O que se tem tentado fazer é tentar convencer as pessoas que aqui também se vive bem. Sobre a política do “caça-cabeças”, temos tentado contactar jovens médicos que estão a acabar as suas especialidades para que equacionem vir para a Guarda, tentando ao mesmo tempo convencê-los. No entanto, não temos conseguido ser atrativos. Há uma coisa, que não é a realidade, mas que o povo, com a sua sabedoria, tem nos seus provérbios: “Cria fama e deita-te a dormir”. É verdade que, infelizmente, os serviços de saúde da Guarda criaram famas que não são favoráveis. Contudo, temos serviços bastante humanizados, até porque a saúde tem de ser vista de forma holística, não basta apenas cuidar da doença. Temos, finalmente, estruturas físicas que não envergonham ninguém e que estão ao nível das mais modernas e aceitáveis no país. Esses são os esforços que a ULS pode fazer e que tem feito: tentar melhorar e dar melhores condições hoteleiras, já que nos recursos humanos temos de admitir que é muito difícil.
P – A nível de dados da ULS da Guarda, qual é o número de médicos e enfermeiros neste momento? E o número de consultas e de cirurgias do ano passado? É possível melhorar estes dados?
R – Temos 95 médicos de medicina geral e familiar, cerca de 180 em todo o distrito. Enfermeiros são por volta de 600. Mas não podemos deixar de contar com os outros técnicos de saúde, como psicólogos ou assistentes sociais. Em relação ao próprio tamanho das instituições, quanto maior for mais se dilui a imagem interna. Não tenho dúvidas que se trabalha muito bem na Guarda, bem como nas outras instituições, mas também não tenho dúvidas que há coisas que por vezes correm menos bem, aqui como em Coimbra, Lisboa, Londres ou Nova Iorque. A visibilidade, pelo tamanho e pela proximidade que existe com a população num hospital destes, é diferente de um hospital central. Costumo dizer que um utente entra num hospital central e a família acaba por perder o seu rasto, por se tratar de uma unidade tão grande. Os nossos são pequenos, as pessoas têm um acesso mais privilegiado e direto, ou seja, tudo é potenciado, tudo se vê, tudo se sabe e comenta. A ULS tem quase 2.000 funcionários em todo o distrito e é, sem dúvida, a maior empresa do distrito, quer em número de trabalhadores, quer em estruturas. Temos dois hospitais, 13 centros de saúde, uma unidade de saúde familiar aqui na Guarda e duas unidades de cuidados continuados. Relativamente ao número de consultas, foi registado, em 2015, um total de 131.059 de todos os tipos e 7.003 externas com registo de alta. Algo que nos preocupa é que, estatisticamente, a produção de alguns serviços baixou um pouco devido à falta de técnicos e a uma nova lei, com a qual concordamos, e que foi negociada com os sindicatos e com o Governo, que obriga cada funcionário que faça o turno da noite a ter folga no dia seguinte. Esta situação não tem grande relevância nos hospitais centrais, o mesmo já não se pode dizer em hospitais do nível do da Guarda, onde existem serviços com, por exemplo, quatro médicos.
P – Em relação às consultas externas e às listas de espera, acha que é possível, mesmo com os meios que têm, melhorar a capacidade de resposta às necessidades dos utentes?
R – É possível se conseguirmos dar aos cuidados de saúde primários outras condições de trabalho, que ajudem a não levar tantos doentes ao hospital. Se diminuirmos este fluxo conseguimos tratar mais rapidamente. Contudo, se continuar a haver um “boom” de doentes, é natural que os serviços vão atulhar. Há que fazer uma aposta muito grande e decisiva a nível de cuidados de saúde primários. A falta de médicos nesta área é mais pontual, infelizmente existe mais em determinados concelhos.
P – Em Figueira de Castelo Rodrigo o município pôs em prática um sistema complementar de serviços de saúde, acha que esse é um bom exemplo do que pode vir a acontecer no futuro para contrariar a falta de médicos?
R – Não conheço o serviço mas acho que essa não é a melhor aposta. Estaríamos a ser hipócritas, uma vez que defendemos o Serviço Nacional de Saúde (SNS), uma conquista de Abril que contribuiu decisivamente para as melhorias em relação à saúde dos portugueses. Sou defensor do SNS e não entendo por que há discursos tão bonitos em relação a este e na prática não se verifica o apoio efetivo. Em termos de cuidados de saúde primários, o distrito tem carências nalguns concelhos, que são graves e preocupam muito. A média da idade dos médicos situa-se nos 56 anos, são profissionais com muitos anos de serviço e começam a entrar numa fase de vida que seria de abrandar e nós ainda lhes pedimos que façam mais.
P – Acha que a criação do Centro Hospitalar da Beira Interior está para breve? Este poderá ser determinante para melhorar a qualidade de saúde na região?
R – Não defendo a criação de um centro hospitalar, pois implicaria uma gestão única com unidades englobadas funcionando como um todo. Defendo mais a criação de um polo hospitalar, onde cada uma das estruturas manteria a sua administração e a sua identidade. Haveria uma enorme partilha entre os técnicos dos serviços de cada instituição. Este seria mais benéfico para a Guarda. Se fosse criado um centro hospitalar, a administração era única e a decisão para a sua localização seria complexa. Unir os três hospitais é uma falácia, não funciona. Temos de potenciar o que cada um tem e o que cada um necessita.
P – Vila Nova de Foz Côa fazia parte da Administração Regional de Saúde do Norte, transitou para o Centro, passando a integrar a ULS da Guarda. Esta situação significou uma melhoria para a população daquele concelho e também para a dimensão dos serviços da ULS Guarda?
R – Relativamente ao tratamento das pessoas de Foz Côa assistíamos a algo curioso: elas estavam no Nordeste mas vinham para a Guarda. Os utentes tinham de ir para Bragança ou Mirandela, o que também não é atrativo, e sempre foram habituados a vir para a Guarda, que é mais perto e tem melhores condições. Nesse caso só havia uma penalização para a ULS da Guarda, uma vez que as ULS não recebem por aquilo que produzem, são financiadas por capitação, recebem pelo número de habitantes que têm de assistir. Desta forma, isso ficou resolvido.
P – O Governo está a decidir a localização de serviços de radioterapia e medicina nuclear na região. Qual é a posição da ULS da Guarda sobre esta matéria?
R – Existe, por um lado, uma posição que a CIM assumiu, de defesa do serviço no Fundão. A CIM abrange 12 concelhos do distrito da Guarda e não me parece que possa haver aqui muitos termos de negociação, uma vez que 12 concelhos já decidiram que ficaria no Fundão. Só com “fait-divers” é que se pode fazer outra coisa. Por outro lado, existe a entrada do pedido de Viseu, que veio baralhar esta questão. Os serviços novos são todos bons, mas, enquanto diretor clínico da ULS, o meu objetivo é por a trabalhar bem aquilo que cá temos e acho que ainda temos um caminho longo a percorrer em vez de andarmos a sonhar com uma coisa muito sofisticada, altamente diversificada e tecnologicamente de ponta, quando ainda temos muitas carências para consolidar. Penso que é um processo que se vai gastar com “fait-divers” e discussão política e social, mas as premissas são estas. Não podemos esquecer que 12 presidentes de câmara, de 12 concelhos do nosso distrito, disseram “sim” para esse serviço ir para o Fundão. Não vejo como possa haver recuos. Acho que as vias para a decisão já estão tomadas há muito tempo e nessa altura a Guarda não falou.
P – Acha que fazia sentido repor o debate ou já é tarde?
R – Na fase em que está já é tarde, não se falou no distrito quando se devia falar. Agora o comboio já está em marcha e basta escolher a estação. No entanto, quer queiramos quer não, entre os distritos em causa, a Guarda é o maior em termos populacionais. Costumo dizer que os serviços de saúde devem estar onde estão as pessoas. Estamos num distrito dos mais envelhecidos do país, temos concelhos com 500 por cento de taxa de envelhecimento, existem apenas cerca de dois onde a taxa é inferior a 200 por cento. Com a ação da medicina cada vez se vive mais e melhor, e com o aumento da longevidade vão surgindo todos os tipos de doenças que o serviço de radioterapia pode tratar e diagnosticar. De acordo com estes fatores nós até tínhamos a “farinha necessária para fazer o bolo”, mas não se fez. Não deve ter sido para os políticos uma prioridade na altura.
P – Em relação aos serviços da ULS, como está a Ortopedia?
R – É uma grande preocupação. Com a reforma de vários colegas estamos com quatro médicos no quadro e alguns reformados que estão a fazer contratos, mas com horários reduzidos. É complicado conseguirmos a vinda de ortopedistas para a Guarda. Estamos a fazer os possíveis para atrair médicos mas não é fácil. A Ortopedia é uma unidade básica num hospital do nível deste. Para além desta, há mais duas especialidades que têm de existir para sermos hospital: a Cirurgia e a Medicina. E, neste sentido, continuamos a fazer toda a pressão e sensibilização possível para que abram vagas nos concursos para que os nossos jovens ortopedistas venham para aqui. Contudo, temos de ter consciência que um hospital deste tipo não possibilita a especialidade por completo, fornece uma formação parcial. Grande parte dessas especialidades são feitas nos hospitais centrais, como Coimbra e Porto, e depois acabam por ficar lá. Estamos a tentar melhorar o serviço, a parte nova do hospital é atrativa, criou-se também uma biblioteca especial de Ortopedia destinada aos internos. Estamos ainda a tentar investir em novos aparelhos desta especialidade para diversificar o que se tem feito. Vou ter uma reunião no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra para criarmos novas pontes e trazermos algo novo para a Guarda. Saiu uma nova lei, que me parece interessante, que prevê a possibilidade dos hospitais dispensarem médicos e se o hospital estiver a mais de 60 quilómetros, existem incentivos para a sua vinda um ou dois dias por semana. Fica caro, pois tem de se pagar o dia, as viagens, mas a saúde não tem preço e há sempre uma altura em que temos de “puxar os cordões à bolsa”. Também a Cardiologia tem apenas três médicos disponíveis. Enquanto serviço não está em risco, contudo, enquanto serviço com a qualidade e capacidade de intervenção que tem tido, é problemático. Com apenas estes médicos não é possível manter uma escala de urgência diariamente. Precisávamos ainda de ter mais um reumatologista, pois só temos um. Também a anestesia é fundamental nas especialidades cirúrgicas e corremos o risco de um dia ter cirurgião e não ter anestesista, ou vice-versa.
P – Acredita que a Guarda possa voltar a ser uma cidade de referência na Saúde, mesmo com a falta de médicos e de outros meios?
R – Não podemos viver sempre do passado nem dos louros do sanatório, até porque a realidade social não era igual. No entanto, temos algum capital de reserva que nos pode fazer ser algo de ponta a nível de saúde. Por exemplo, nas doenças respiratórias, temos a qualidade do ar, a tradição e uma equipa técnica muito boa. Acho que tem faltado à Guarda ambição. É outro aspeto que me choca, às vezes somos pouco ambiciosos. Não devemos olhar para o ontem, e aqui ainda se olha muito, temos de ter uma visão projetada para o amanhã e para o depois de amanhã. O serviço de Pneumologia dará um salto quando todos conseguirmos ver o depois de amanhã. Mas não pode ser só a ULS, também cabe às autarquias e à sociedade intervir. Há inúmeras coisas hoje em dia, como o turismo de saúde, que podiam ser perfeitamente aproveitadas em termos de saúde respiratória, interligando com o que a natureza nos deu. Existem ótimas termas, onde se pode conjugar a saúde, o termalismo e o lazer.
*com Patrícia Garrido
Luis Baptista-Martins