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As lições do Sr. Kraus *

A cada dia que passa, a política transforma-se cada vez mais num teatro de variedades. Temos os actores políticos e os enredos trágico-cómicos e o povo sentado na plateia a bater palmas e a pagar bilhete. A comunicação social que nos transformou numa «aldeia global» apenas ampliou o palco e permite-nos ver as peças de camarote, em casa. Mas continuamos a pagar o bilhete. Como os media são cada vez “mais que muitos” e precisam de ser alimentados, aceleram e criam os seus próprios enredos, a que os políticos – sempre desejosos de aparecer – logo dão a cara.

Passadas as campanhas eleitorais os grandes temas da actualidade morrem debaixo do tapete, como lixo que não pode ser despejado mas sempre pode ser escondido, até que se levante um novo pano e comece uma nova peça de teatro.

“O Senhor Kraus”, recente livro de Gonçalo M. Tavares, fala-nos de um senhor que escrevia crónicas no jornal e que a seguir a umas eleições anotou no seu caderno: «No contacto com a população mais simples, alguns políticos dão beijos na cara como quem do cais diz adeus ao barco que parte para nunca mais voltar».

Mas o povo volta. Passados uns tempos volta… nas semanas que antecedem a eleição seguinte. “Esse intervalo temporal é indispensável para que o político tenha tempo para transformar, delicadamente, o ódio ou indiferença em nova paixão genuína”.

Começa então mais um espectáculo de prestidigitação, de truques e magias que agarram o espectador. “Quando um político nos fala do céu, e aponta o dedo para o alto dizendo, vêem?, é aí, nesse momento, que devemos olhar atentamente para os objectos que ele guarda na cave” alerta o sr. Kraus.

Mas o povo – na plateia ou no camarote – quer é a magia. Não quer saber como é feito o truque. Isso é a realidade. Quer é sonhar, quer acreditar que os coelhos saem mesmo da cartola. Não importa como. É por isso que, diz o sr. Kraus, os políticos transformam a relação com o povo num espectáculo. Porque o povo, essa caterva de “anónimos identificáveis” pode não ser muito interessante mas, lamentavelmente, “é necessário”. Para o político, diz Kraus, “o mapa mais real do país era o aparelho de televisão que tinha em casa”, por isso não descuida o seu discurso cheio de força e emoção para criar um ambiente global capaz de conseguir os seus intentos. Até que o povo volte a partir.

As lições do Sr. Alegre

O senhor Alegre não vem no livro de Gonçalo M. Tavares. Pelo menos, não com este nome. Mas é uma personagem interessante. Como político vive no palco dos partidos, eleito durante trinta anos nos palcos da política partidária. Um dia, porque não lhe deram o papel principal numa peça, resolveu cortar com o encenador. Quis ir representar para a plateia, chamar as pessoas para a sua peça interactiva. Dizer-lhes que também podiam ter um pequeno papel . Continuavam a ser figurantes, mas podiam aparecer nos créditos da nova peça. Mas depois de ter terminado a temporada e ter descido o pano, resolveu regressar à sua companhia, assumir o seu lugar de actor residente, e ganhar o seu salário no Teatro Nacional da Assembleia da República. Disse do encenador Sócrates, o que antes só tinha dito de Salazar, mas está esquecido tudo o que disse, em nome da paz podre e da incoerência.

(*) O Senhor Kraus, Gonçalo M Tavares, ilustrações de Rachel Caiano, Editorial Caminho, Lisboa 2005

Por: João Morgado

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