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As fronteiras imaginárias do TMG

Theatrum mundi

Da minha infância e adolescência na Guarda recordo as horas passadas a ver televisão espanhola. Vale a pena dizer que, nos anos 70 e 80, ver televisão ainda não se tinha transformado no puro exercício escusado, na absurda perda de tempo, que na maioria dos casos hoje, sem dúvida, é. Naqueles tempos, e como só mais tarde viria a ver entender, ver televisão espanhola era muito mais do que ver televisão. Para aquela primeira geração que cresceu a ver televisão, a ‘espanhola’, simplesmente a ‘espanhola’ como era tratada, sem mais, em sinal da intimidade aos poucos alcançada, era uma verdadeira janela aberta para o mundo. Hoje posso dizê-lo sem hesitação, hoje compreendo; foi o abrir de essa janela que primeiro me fez ver ao longe, que primeiro me fez querer encontrar alguns dos lugares que entretanto encontrei e interessar-me pelos assuntos que me interessam até hoje e ocupam o meu tempo. Em tantos aspectos, muitos aspectos, essa era a pantalha que todos os dias contrastava com o Portugal ainda fechado dos anos 70 e 80. Que todos os dias desfocava a pequena Guarda, a isolada Guarda, e permitia sobrevoar as inúmeras barreiras que se estendiam à volta dela. Chegar à fronteira pela antiga EN 16 demorava o seu tempo, ainda por essa altura, um tempo passado a fazer curvas e contra-curvas. Ir a Lisboa ou a Coimbra nem se fala; era uma pequena odisseia. Ao Porto nunca fui. É verdade que as fronteiras são sempre, e em certa medida, imaginárias. Elas existem onde não se vêem e as que se vêem vão sendo reconstruídas pela mente e pelas actividades humanas. Naquelas horas em frente da pequena pantalha, a minha impressão era a de que Portugal ficava tão longe, ou tão perto, como Espanha.

Apetecia-me dizer tudo isto como prólogo a uma breve nota relativa à integração do TMG na rede de teatros de Castela e Leão. Em meu entender, este é seguramente o acontecimento mais significativo e prometedor das últimas décadas na vida da Guarda. A par da própria criação do TMG, está claro. Porque mostra que a cultura cria novas centralidades e impulsiona a produção e transacção de novos bens económicos; porque mostra que, nos nossos dias, a cultura permite recriar o significado das fronteiras políticas e refazer as identidades seculares assentes na desconfiança e no desconhecimento dos que se (des)encontram de ambos os lados. Em si mesma, esta integração é histórica e até revolucionária. Não é só um acto de oportunidade e capacidade de negociação; é um acto que reage com imaginação às limitações próprias de um pequeno país e à fatalidade do isolamanto e da interioridade. E também representa o acto bem tangível do que deve ser um dos eixos fundamentais do desenvolvimento da Guarda – a articulação, nos diferentes sectores, com Castela e Leão como forma de quebrar as lógicas da interioridade e da depressão social. Criar no interior novos pólos de atracção e qualidade de vida é o desafio que está em causa, e a colaboração com Castela e Leão soma experiência, vontades, recursos e capacidade de execução. Afinal, não vale a pena subestimar o sucesso dessa experiência de autonomia regional com um percurso de quase três décadas.

Por: Marcos Farias Ferreira

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