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Apague-se o cheque

«Papel» ainda quer dizer dinheiro mas o papel em si está em vias de desaparecimento. O papel do dinheiro (dantes tão bem impresso) e o papel dos cheques (que dantes causavam tão boa impressão) são cada vez mais desencorajados pelas entidades financeiras, a quem dificultam e encarecem a vida.

Em vez do bom papel da nota ou do ainda aceitável papelito de um cheque querem – e conseguem – os bancos que tudo seja substituído pelo miserável talãozinho que mal se lê e qualquer lufada leva. Na Finlândia já não há cheques desde 1993 e nos outros países frios da Europa (exceptuando o Reino Unido, que Deus abençoe) é quase tudo feito virtualmente, por transferência bancária. O que – sejamos perfeitamente francos a este respeito – equivale a confessar que o dinheiro, de facto, não existe.

Só o ar. A narta – a verdadeira contrapartida em oiro de lei, o pesado carcanhol de Robin dos Bosques – evaporou-se. Ficou o talãozinho e o inefável extracto «online» que os mais desgraçados lá imprimem, na ânsia quixotesca de preservar um documento.

Portugal deveria preservar o cheque como valor patrimonial e turístico. É mais um atraso que nos pode servir para avançarmos no mundo. Haveria de promover-se a reabilitação dos antigos livros de cheques, belamente ilustrados e gravados a relevo, com os respectivos canhotos para se poderem fazer as contas à vida.

Um cheque implica confiança, dúvida, avaliação mútua e outras interacções humanas bem mais interessantes do que a repetida passagem de um cartão por uma pistola Multibanco e a expressão pétrea e pseudopreocupada do costume: «Não sei porquê; não está a autorizar…» Um cheque é um documento pessoal e assinado; o registo único de uma transacção humana. Pode ser exibido num museu ou sacudido dramaticamente num tribunal.

Mas a assinatura (que, tal como a caligrafia, é tão significante) também tem os dias contados; substituída pelos dados biométricos e pelos codigozinhos com que todos revertemos ao analfabetismo e ao assinar de cruz.

Ou nem isso sequer.

Por: Miguel Esteves Cardoso

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