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América psicótica

Crónicas da Lua Vaga

Portugal já não é o país de brandos costumes como outrora se dizia. Temos assistido nos últimos anos a um fenómeno crescente de crimes praticados por jovens delinquentes, homicídios, roubos à mão armada, e diversos actos de violência, mais ou menos graves. Para quem vive fora das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, este fenómeno da violência ainda se traduz numa realidade algo distante. A Guarda e o seu distrito mantêm-se como um sereno baluarte da segurança pública, comparativamente ao índice de crime violento que existe em certas zonas densamente povoadas. Exceptuando o homicídio de dois agentes da GNR há três anos em Freixo de Numão (Vila Nova de Foz Côa), o panorama dos crimes violentos tem sido, por estas bandas, sereno.

Vem esta introdução a propósito de mais uma notícia vinda da América que dá conta de um novo massacre perpetrado por um estudante na Universidade do Illinois. Stephen Kazmierczak, um ex-estudante de Sociologia daquele Universidade, sem precedentes criminosos, colega afável mas solitário, irrompeu no auditório no passado dia 14 de Fevereiro, disparando indiscriminadamente. Matou 5 alunos, feriu 16. Certa comunicação social culpabiliza o facto do assassino ser viciado num jogo de vídeo violento (“Counter Strike”) como possível causa para a matança. Este jogo é muito popular entre a comunidade virtual e é jogado por muitos milhões de jovens em todo o mundo. Serão todos potenciais assassinos? Claro que a resposta é complexa e mexe com vários factores. Quase previsivelmente, este não será o último tiroteio em massa a ocorrer em locais públicos nos EUA. A violência está inscrita nos genes da América. O fascínio que os americanos têm pela cultura das armas e pela violência advém das reminiscências do Oeste selvagem. O tema foi explorado por Michael Moore no seu documentário “Bowling for Columbine”, e inúmeros ensaios, livros e estudos, têm tentado explicar o fenómeno. Os homicídios, sem motivação aparente, continuam a espantar a opinião pública (todavia, por vezes esquecemos que a América não é o único país violento do mundo; só durante os dias de Carnaval do Rio de Janeiro foram assassinadas 80 pessoas). Mas é quase sempre nos EUA que surgem os casos de violência mais espectaculares e mediáticos. A América é a terra natural dos serial killers, é a terra dos massacres, dos crimes mais hediondos e intrincados (vide o filme “Zodiac” de David Fincher), dos assassínios de figuras públicas. E a obsessão dos americanos pela violência e pelo crime é historicamente fértil. Paralelamente, a investigação forense também exerce um grande fascínio junto do cidadão comum. O estudo da mente de um criminoso (sobretudo da de um serial killer) é matéria vasta para dissertações teóricas e científicas. O lado negro da mente humana emerge como matéria de fascínio e de desconcerto à luz da racionalidade das coisas.

Na literatura, no cinema e nas séries de televisão, a criminologia, a morte violenta, e as patologias sociais associadas, são temas extremamente recorrentes e explorados até à saciedade. Os recentes sucessos no campo das séries televisivas têm forte relação com este panorama – CSI, 24, Dexter, Prison Break, Ossos, Lei e Ordem são apenas alguns exemplos. Na literatura, basta referir o sucesso de Truman Capote com o livro “A Sangue Frio”, espantoso relato semi-jornalístico, semi-ficcional, de um homicídio brutal na América rural dos anos 50. Haveria muito mais para mencionar, mas fico-me apenas por mais este exemplo: “American Psycho”, livro do escritor da chamada Geração X, Bret Easton Ellis, perturbante retrato de uma viagem ao abismo na violência mas sádica e desbragada, numa sociedade americana dos anos 80 afogada em yuppies consumistas e falsa serenidade social. O livro foi adaptado para cinema pela realizadora Mary Harron (2000), com o actor Christian Bale possuído como um urso em fúria. Bale é Patrick Bateman, durante o dia um cumpridor executivo da bolsa, obcecado pelos bens materiais, fatos de alta-costura, culto do corpo e frequentador de restaurantes elitistas. À noite, Patrick transforma-se num monstro sanguinário e implacável, assassinando sem dó nem piedade, almas penadas que vagueiam pelos becos de Nova Iorque. A visão ficcionada de Bret Easton Ellis recalca a ferida aberta que é a violência desmedida e sem motivação aparente. Reflecte o mal civilizacional em que se tornou o homem nesta era do vazio. Uma América cada vez mais psicótica. Uma América que gosta de ostentar a bandeira da liberdade, da democracia e das oportunidades, mas que vive num território de sordidez moral e de violência latente.

Por: Victor Afonso

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