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Alma, de Manuel Alegre

Ler para Querer

Em 1995, Manuel Alegre é hospitalizado na sequência de diversos problemas de saúde. Após conhecer o diagnóstico que ditava o internamento, lamenta que essa debilidade física lhe traga um contratempo: a interrupção da escrita de uma obra que iniciara. De uma forma inusitada, que surpreendeu a equipa de médicos que o acompanhou, pediu: “Ao menos deixem-me acabar o livro”. A obra, forçosamente interrompida, a que o autor se refere é Alma.

Sobre a obra Manuel Alegre afirmará: “É um livro que nasceu depois da morte dos meus pais, é uma tentativa de recuperar o tempo perdido, uma Recherche du Temps Perdu à minha dimensão, à nossa dimensão, porque a nossa infância é a matriz essencial de tudo”.

Convicto de que é na infância que reside o etymon da vida que depois se espraiará, Manuel Alegre convida-nos a, pela mão da memória, partilharmos consigo o conhecimento de personagens que preencheram a sua meninice, em Águeda. Interrogado sobre o peso da autobiografia em tal texto, esclarecerá: “Alma é um romance e os romances partem de vivências que são transfiguradas. A escrita e a vida são inseparáveis, mesmo quando os livros são fruto só da imaginação”.

Conscientes desse fio ténue que separa aquilo que é do que pode ser, chegamos a Alma, a vila da infância, conduzidos por trilhos dúcteis e misteriosos, vamos visitando um espaço que nos vai sendo apresentado, não raras vezes, como mítico.

Pela voz do narrador autodiegético, Duarte de Faria, adentramo-nos no seu passado que recupera, concomitantemente, o passado colectivo de uma comunidade dos anos 30/40 do Portugal salazarista. Numa estrutura de encadeamento narrativo, entrecruzam-se duas histórias: a individual, de Duarte, com os fascínios, sonhos e receios infantis, pejada de rememorações nostálgicas dos jogos e da camaradagem de outrora, e a de Alma, uma comunidade peculiar, dividida entre o fervor republicano, o temor a Salazar e a nostalgia monárquica, esta última, encarnada por uma minoria, à qual pertence Lourenço de Faria (pai de Duarte) e outros ‘fidalgos num tempo em que já não havia lugar para ordens de cavalaria’— um grupo que se afigura a Duarte como os ‘órfãos de rei’.

De Alma emerge, essencialmente, a fluidez da escrita que caracteriza Manuel Alegre, a par do poder evocativo das palavras que parecem erigir, a traços firmes, os espaços descritos, as personagens peculiares, as inúmeras e variadas sensações vividas. Inúmeras são as personagens que permanecerão, finda a leitura: o Zeca Sucateiro, preso pela PIDE, porque esse organismo desconfia tratar-se de um acérrimo militante comunista e fervoroso leitor do Avante; ele que, confessa a Abília (sua mulher), apenas lê A Bola; o Ti Florêncio, dono do comércio local, espaço onde se reúnem os republicanos para discutir a evolução da guerra, cujos ganhos e perdas são representados, com bandeirinhas inglesas, num mapa da Europa afixado na parede do comércio para o efeito; Virgolina, a sábia empregada de Duarte que o iniciará, e aos seus amigos, nos segredos da intimidade sexual, revelando-lhes que o corpo não é um recanto proibido, sensibilizando-os para a reciprocidade de prazer a envolver uma relação…

Trata-se de uma partilha de memórias que acaba por ser entendida pelo leitor, inevitavelmente, como uma quase-vivência dessas memórias. Não nos parece abusiva esta afirmação, talvez porque tenhamos lido Alma, pensando no nosso espaço-raiz, no nosso berço da infância e tenhamos recuperado memórias outras (nossas!), usando como ponte a memória de Duarte.

Com este narrador que nos vai conduzindo pelos marcos determinantes desse tempo primordial da infância, somos impelidos a encetar um percurso de recuperação do tempo vivido. A leitura desta obra incita à partilha, solidária, da perda irreparável do tempo que não pode repetir-se, da sensação de malogro pela vã tentativa de trazer ao colo o passado e o que de nós existiu nele.

Depois desta incursão ao passado, que culmina com a saída de Duarte de Alma, na sequência dos estudos liceais, o autor considerou ter conseguido recuperar o tempo perdido, pela celebração, anda que rememorativa, de uma época em que tudo parecia resolúvel e eivado de magia. Os leitores deste texto saem dele (ou permanecem nele, pelo menos durante algum tempo!) refeitos, embora nostálgicos, pois é redobrada a sua convicção pessoal: é inevitável a passagem do tempo e a soma e a subtracção de perdas e ganhos que as diversas etapas do nosso crescimento implicam.

No entanto, sempre que visitamos essa época pretérita de nós, parece ficar uma sensação de irremediável saudade daquilo que de nós deixámos nas pessoas e nos espaços que ficaram para trás; inevitavelmente despedimo-nos desse lugar da infância, sentindo-o como mais do que um lugar, tal como Duarte sente ao despedir-se da sua vila, quando parte, naquele final de Setembro, de camioneta para Lisboa: “Alma, dizia eu. Como quando era pequeno e dizia mãe”.

Por: Manuela Duarte

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