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Algures no Pliocénico

Quando estava em Coimbra, nos anos 80, ninguém tinha computador (o Macintosh iria aparecer apenas em 1984 e era mais caro, em valores absolutos, nem sequer corrigidos, do que agora). Nem telemóvel. Para fazer “comunicados” usava-se o “stencil”, que consistia em nem queiram saber o quê e que resultava em documentos com péssimo aspecto. As fotocópias eram caríssimas. As roupas passavam de pais para filhos e de irmãos mais velhos para mais novos. As sardinhas faziam mal à saúde. O azeite também (os óleos vegetais e as margarinas é que eram bons). Os meninos gordos eram lindos. Toda a gente fumava e podia fumar-se em praticamente todo o lado (nos anfiteatros da Faculdade de Direito usavam-se latas de sardinha como cinzeiros). A televisão era a preto-e-branco. Os carros eram todos a gasolina e ninguém usava cinto de segurança. Não havia ABS, ou airbags, ou ar condicionado. Ninguém usava cartão de crédito e ainda não havia Multibanco. Nem Via Verde. Nem, já agora, auto-estradas. A principal via de comunicação do país com o estrangeiro (fora o Sud-Express) era a estrada nacional 16. No Café Tropical, na Praça da República, o poeta Joaquim Namorado descrevia assim a mulher beirã: “baixa, gorda, mal vestida, com bigode – o bicho mais feio do Império Romano”. Havia duas (depois três) discotecas em Coimbra, todas más. Poucos restaurantes com interesse (e na Guarda nenhum) e a maioria eram mesmo maus (mas não se usavam batatas fritas congeladas). Nada aberto depois das duas da manhã. Podia-se circular sozinho pela cidade a qualquer hora do dia e da noite, como de resto em praticamente todo o país. O cúmulo da sofisticação empresarial consistia em enviar um “telex” (como este não permitia assentos, substituía-se “é” por “eh” – vício que a Internet em português guardou durante algum tempo). Não havia fax. A Bolsa de Valores estava suspensa desde o 25 de Abril de 74. A maioria das grandes empresas estava nacionalizada. Não estávamos ainda na CEE. Se um jovem em idade de cumprir o serviço militar precisasse de ir ao estrangeiro, como eu para ir ao campeonato europeu de juniores de xadrez em 1979, precisava de obter uma licença militar. Da Guarda a Viseu, em transportes públicos, levava-se um dia inteiro (cheguei a ir de véspera e a alojar-me numa pensão para estar de manhã cedo no DRM). Ainda se viam nas aldeias pessoas descalças. Ainda havia gente nova nas aldeias. A maioria da população não tinha conta no banco e guardava o dinheiro em casa. Uma agência bancária empregava dezenas de pessoas. Não havia IRS, nem número de contribuinte. Os que não tinham telefone, televisão, frigorífico, esgotos, eram a maioria.

Sugestões:

Um livro: A Vida Sexual de Immanuel Kant (Jean Baptiste Botul, cavalo de ferro, 2004). Atenta a influência do filósofo sobre o pensamento ocidental e as teorias de Freud sobre o sexo, esta leitura é, ou deveria ser, fundamental para se compreender o mundo em que vivemos. Advirto que, para eterna desgraça de Kant, o livro tem apenas 69 páginas (acredito que aumentaram o corpo da letra para atingir esse número), muito de especulação e zero de pura e dura concretização.

Um filme: Mannathan (de e com Woddy Allen, a distribuir esta semana a preço de saldo com “O Público”). Começa com duas mulheres, já idosas, que comparam a vida a um mau restaurante: o serviço é péssimo, a comida é horrível … e as doses são tão pequenas!

Outro livro: V. (Thomas Pynchon, Editorial Fragmentos, 1989). Um menino nasce com um parafuso de ouro no lugar do umbigo. Os médicos não resolvem o problema e ele, já adulto, consulta um feiticeiro Vudu. Este dá-lhe uma poção que o faz dormir e sonhar com uma árvore mágica em que encontra, pendurada, uma chave de fendas em ouro. É com ela que, no sonho, retira o parafuso. Acorda exultante, já com um umbigo normal, e salta da cama aos pulos – para ver de imediato as nádegas caírem-lhe no chão. Os caminhos de Deus são insondáveis.

Por: António Ferreira

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