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Absolutismos contemporâneos

A “silly season” chegou e a abundância solar dos seus dias não passou despercebida ao Governo, que decretou que o IMI passasse a ser sensível à exposição solar dos imóveis. Assim, com as novas regras aprovadas, quem tem casa virada a sul arrisca-se a ver essa radiosa generosidade da natureza sair-lhe dos bolsos na forma de mais imposto municipal. Parece justo, mas não é. Casas iguais passarão a poder pagar impostos diferentes, o que significa que, no fim das contas, quem quiser Sol ou opta por uma casa mais pequena ou tem de pagar mais. Já se vê quem passará a ficar, por boas razões financeiras, na sombra das traseiras dos prédios. E esta é a injustiça: onde não havia razões, passou a haver uma racionalidade. Por uma razão económica, o Estado torna razoável que quem tenha menos dinheiro tenha menos Sol. Um Estado assim, que se mete a controlar tudo e a introduzir racionalidade em tudo, até quando se trata de um bem comum inesgotável como o Sol, não caminha pelo lado da liberdade. É uma espécie de Estado-Sol que acha que deve levar a sua luz fiscal e reguladora a toda a parte como aquele Rei-Sol francês, ícone do absolutismo régio, que se dizia ter dito “l’État c’est moi!”

Outro absolutismo dos nossos tempos é a ridícula competição por centésimas de valor a que são sujeitos jovens – que ainda nem sequer maiores são – pela entrada nos cursos de Medicina. Mais uma vez aqui mandaria o bom-senso que nem todas as qualidades fossem traduzidas numa medição numérica. Mas todos os anos acontece o contrário. As médias elevadíssimas para a entrada nos cursos de Medicina deixam de fora alunos que se mostraram excelentes e incluem alunos que darão maus médicos por falta de vocação ou por procurarem ingressar em Medicina pela motivação errada.

Que interessa um ingresso com 20 valores se é feito apenas porque competia por entrar no curso com a média mais elevada? E por que se perde um ingresso com 17 ou 18 valores de quem, se fosse levado a uma entrevista, relevaria qualidades humanas indispensáveis ao relacionamento médico com pacientes?

Bom seria que estes dias de tanto Sol pudessem servir para que no ar dos tempos se fosse percebendo que o essencial pode não estar numa eficiência, mas no que ela deve abster-se de controlar. O Sol, que só uma insolação governativa se lembraria de tributar. Ou o ingresso em Medicina, onde um teto mínimo de médias deveria servir apenas de condição de admissão a uma entrevista vocacional. Enfim, esperemos que a própria “silly season” nos liberte das contas do orçamento, das multas e das sanções, e nos traga a calma indolência da escolha da praia em que veremos o pôr-de-sol antes de sabermos para onde vão estudar alguns dos nossos filhos no próximo ano.

Por: André Barata

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