Apesar dos esforços dos primeiros-ministros espanhol e turco por dar conteúdo concreto a uma aliança de civilizações à escala global, os últimos dias mais parecem querer corroborar a inevitabilidade de um ‘choque de civilizações’ de teor até agora insuspeito. É verdade que a expressão de Samuel P. Huntington é controversa e que desencadeou inúmeras críticas em redor, desde logo, da própria noção de civilização utilizada, para não falar dos critérios de identificação e distinção entre civilizações. Mas também é verdade que a expressão acabou por saltar da disputa académica mais fechada directamente para o debate público gerido pelos media onde, em virtude de um conjunto de acontecimentos excepcionais, o suposto confronto entre o Ocidente e o Médio Oriente tem vindo a assumir protagonismo renovado. Na discussão global que se amontoou a partir do dia 11 de Setembro de 2001, o discurso do choque de civilizações pareceu o mais apropriado para compreender os ataques de Nova Iorque e a utilização política do terrorismo contra um alvo concebido, nem mais nem menos, como o Ocidente e a sua concepção do mundo e da vida. Apesar das cautelas que se seguiram, foi o próprio presidente Bush quem se apressou a notar que os terroristas islâmicos haviam atacado o coração do Ocidente e que o Ocidente devia responder sem hesitações. Com as guerras entretanto desencadeadas e os sucessivos erros de percepção que acompanharam a utilização da força indiscriminada e a substituição apressada de regimes, foi o próprio Ocidente a contribuir para pôr em prática o que começou por ser apenas uma tese: o choque de civilizações.
A polémica das caricaturas de Maomé publicadas em vários jornais europeus não pode deixar de ser vista, como é óbvio, à luz destes acontecimentos e das percepções contrastadas que eles originaram. A ‘rua árabe’, como é usual chamar à sociedade civil que não existe nos países do Médio Oriente, tem nesta ocasião uma oportunidade privilegiada para responder, não só ao que percebe como um aviltamento inconcebível da figura do profeta, mas essencialmente a todas as ofensas de que se acha vítima, umas mais reais do que outras, perpetradas, nas últimas décadas, por um Ocidente hegemónico. E aqui não há distinções entre sociedade e estado, ou mesmo entre estados; é tudo Ocidente, como faz questão de mostrar a ‘rua árabe’ ao incendiar as missões diplomáticas da Noruega e da Dinamarca para punir actos que são imputáveis unicamente a cidadãos ou, quando muito, a instituições de uma sociedade civil realmente independente dos poderes públicos. Se os ataques terroristas de Nova Iorque, Madrid e Londres colocaram o Ocidente como elo frágil do choque de civilizações, e alimentaram a correspondente imagologia de vitimização, agora é o mundo árabe e islâmico que se coloca na pele de vítima de intoleráveis ofensas e apela, por sua vez, à imagologia do choque de civilizações. Neste caso, os próprios moderados parecem não conseguir compreender o que está em causa, ou não poder e não querer agravar o fosso que os tem separado dos extremistas. É aqui que reside a verdadeira tragédia, já que os factos dos últimos dias significam, antes de mais, que se está a esgotar a pequena margem de tolerância que ainda garante o diálogo, e logo a propósito de uma questão paradigmática da liberdade de expressão. O cartoon representa seguramente um espaço crítico da liberdade individual e colectiva, aquele espaço privilegiado para exercer a ironia enquanto figura de estilo e ao mesmo tempo capacidade crucial para definir sujeitos reflexivos, capazes de se questionarem a si mesmos e ao mundo. Para lá de todas as convenções e acima delas. Por isso partilho o desconcerto do primeiro-ministro dinamarquês, chamado a pedir perdão pelo uso alheio de uma figura de estilo.
Por: Marcos Farias Ferreira