A Mediateca VIII Centenário, na Guarda, faz história no início da próxima semana com a exibição da trilogia “Qatsi”. De segunda a quarta-feira, três filmes documentários, sem diálogos ou actores, apresentam uma visão apocalíptica da vida moderna, do Homem e da Natureza, funcionando como libelo anarco-ambientalista contra os malefícios da globalização. Uma sessão inédita em Portugal que revela uma página ímpar da história do cinema e o experimentalismo pioneiro de Godfrey Reggio, realizador de “Koyaanisqatsi” (1982), “Powaqqatsi” (1988) e “Naqoyqatsi” (2002). Uma sessão de culto potenciada por um sistema Hi-Fi Dolby Digital, montado expressamente para o efeito na sala da Fonoteca, de modo a criar um envolvimento audiovisual de grande qualidade e impacto no espectador.
A palavra “Qatsi” significa vida na linguagem dos índios norte-americanos Hopi e é o denominador comum das três experiências cinematográficas cujos rápidos movimentos de câmara, os longos planos-sequência, as imagens hiper-aceleradas ou em super-slow-motion, entre outras técnicas inovadoras, marcaram definitivamente a Sétima Arte e o cinema de vanguarda em particular. Originalidades consolidadas por outro elemento inolvidável: a música de Philip Glass, o histórico compositor minimalista norte-americano, e a sua utilização coordenada com a montagem dos fotogramas. A tal ponto que há uma sincronia perfeita com o ritmo e o sentido das imagens e situações filmadas. Única na sua génese, a trilogia “Qatsi” é também singular na sua produção. Foi realizada ao longo de 20 anos, idealizada por Reggio e Glass como uma reflexão sobre a condição do homem no mundo moderno para a qual contribuem imagens de grande beleza plástica, uma montagem meticulosa e realização de grande originalidade. O resultado é uma empolgante e emocionante aventura audiovisual, na qual imagens e sons se combinam de forma extremamente estimulante para os sentidos, como se de uma epopeia poética em imagens e sons se tratasse, como sublinham alguns críticos de cinema.
A Natureza primordial contra a sociedade globalizada
Os três filmes foram produzidos e apoiados por cineastas como Francis Ford Coppola, George Lucas e Steven Soderbergh, tendo sido exibidos em mais de 60 países para 35 milhões de espectadores e recebido inúmeros prémios artísticos (pelos filmes e pelas bandas sonoras). Esta é a primeira vez que serão exibidos enquanto trilogia em Portugal, mas “Koyaanisqatsi” foi apresentado com música ao vivo, pelo Philip Glass Ensemble, na Gulbenkian em 1982. Na Guarda, “A Vida Fora de Controlo” – assim se intitula em português o primeiro capítulo de “Qatsi”, inaugura segunda-feira esta trilogia. Godfrey Reggio (nascido em Nova Orleães em 1940) apresenta esta primeira obra como uma verdadeira sinfonia visual, com mudanças rítmicas progressivas, com ângulos e movimentos de câmara surpreendentes, com captação de imagens reais de um esplendor estético contagiante. Sem nunca recorrer a diálogos ou actores, pois as imagens contam tudo, “Koyaanisqatsi” revela-nos um mundo onde a natureza primordial da Terra, bela e exultante, dá lugar a uma frenética sociedade industrial, de consumo e globalizada, da qual Nova Iorque é o paradigma. No fundo, é uma visão apocalíptica e atordoadora da colisão de dois mundos diferentes. Dado o seu enorme valor artístico, este filme faz parte da colecção permanente do The Museum of Modern Art (Nova Iorque) e do The British Film Institute (Londres).
No dia seguinte, “Powaqqatsi – A Vida em Transformação” revela imagens da vida quotidiana de gente comum e paisagens naturais de grande beleza plástica, tentando abordar o estilo de vida das culturas nativas e subdesenvolvidas de doze países do hemisfério Sul. As câmaras lentas acentuam a excelência visual da matéria filmada e materializam um contraponto temático e estilístico face à primeira obra da trilogia. “Powaqqatsi” foca a realidade social e cultural de povos que ainda não foram industrializados, onde a Natureza e as vicissitudes do dia-a-dia ainda constituem elementos alheios à alienação tecnológica do homem civilizado. Tem uma fabulosa sequência inicial, onde a música tribal e enérgica de Philip Glass contrasta, vigorosamente, com as belas imagens em “slow motion” dos mineiros da Serra Pelada, no Brasil. Finalmente, “Naqoyqatsi – A Guerra Como Forma de Vida”, o último trabalho da trilogia realizado em 2002, é exibido na quarta à noite. Este filme aborda a temática da turbulência social e cultural existente na sociedade globalizada e tecnológica do século XXI. Reggio mostra-nos um mundo saturado de imagens pré-fabricadas, fruto da sociedade hiper-acelerada e materialista, onde a Natureza foi suplantada pelo advento maciço da tecnologia digital. Estilisticamente, contrasta com os dois anteriores, uma vez que proliferam as imagens digitais manipuladas e os efeitos rebuscados de imagem, em detrimento de imagens reais. A montagem é trepidante e confere a “Naqoyqatsi” uma dimensão caleidoscópica verdadeiramente onírica.
Luis Martins
