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A selvajaria, as premonições e o protofascismo

Crónica Política

Imaginem um país em que um governo, um dia, colocasse milhares de funcionários públicos num regime dito de “mobilidade especial”, colocando-os na prateleira e cortando-lhes progressivamente no salário. Ao fim de 18 meses esses funcionários manteriam, ainda assim, o seTu vínculo ao Estado, mas já sem qualquer tipo de remuneração. Ou seja, não seriam formalmente despedidos, mas ficariam, na prática, reféns de uma – digamos assim – criativa situação não retributiva.

Esse governo justificar-se-ia com o argumento de que «naturalmente, se não trabalham, não recebem, não pagamos a malandros».

Como esses funcionários têm família e obrigações a cumprir, a situação tornar-se-lhes-ia, a prazo, insuportável. Com vínculo, mas sem trabalho e sem salário, chegaria o momento em que seriam forçados a mudar de vida e a demitir-se. Nesse momento o governo diria algo do género: «Tudo bem, mas isso é um problema vosso, querem despedir-se, despeçam-se, mas nesse caso não têm direito a qualquer subsídio de desemprego e muito menos a indemnização».

O país em causa é Portugal e esta é a peregrina equiparação que o seu governo se propõe fazer entre os setores público e privado.

O problema é que uma atuação destas, mesmo em Portugal, nunca seria consentida no setor privado. Aí, mesmo que não lhe seja dado trabalho, o trabalhador recebe integralmente o seu salário ao fim do mês e mantém os seus direitos contratuais, como sejam o direito à indemnização por despedimento e ao subsídio de desemprego.

Esta duplicidade de tratamento entre os dois setores é uma janela para a alma de quem idealizou mais esta brilhante “reforma”. O governo e a maioria que o suporta têm uma arreigada objeção ideológica contra tudo o que é público. Acham que a educação, a saúde, os transportes, os correios, a água, as estradas, os rios, o céu, a lua e o ar que respiramos, deveriam ser entregues a privados. Por concessão, parceria público-privada, privatização, alienação, simples doação, ou por qualquer outro mecanismo. Quem estiver pelo meio, que se lixe. E se não gostar, que emigre.

Esta é uma forma de estar na vida que explica, se nos recordarmos das tendências no mesmo sentido já manifestadas pelo governo anterior, a triste situação em que nos encontramos. Para esta gente é como uma espécie de religião. E infelizmente, como a sarna, é daquelas coisas que, quanto mais se coça, mais se tem.

Num país normal, o Presidente da República funcionaria como contrapoder a este projeto. Mas nós não vivemos num país normal. Nós vivemos num país em que este governo foi a votos prometendo exatamente o contrário daquilo que agora quer fazer. Isto é, vivemos num país em que o governo nivela tudo a zero. Se os trabalhadores hão-de ser colocados numa situação de salário e de indemnização zero, por que razão é que o governo também não pode ter a sua legitimidade democrática reduzida a zero?

O Presidente da República aplaude. Acha até que um país que se afunda na pobreza e na desigualdade, na depressão e no desespero, não corre o risco de fragmentação social! Cavaco só pode estar a viver noutro planeta. Comporta-se como o proprietário de um navio que se preocupa mais em que os passageiros da 2ª classe não se misturem com os da 1ª do que em demitir o comandante que afundou a embarcação.

Camões, que não fazia distinções entre setores público e privado, mas que pelo menos percebia como funcionava um navio, constatou um dia, num vislumbre da lucidez que o tornou imortal, que fracos reis tornam fraca a forte gente. Assim mesmo.

Eu, que não sou tão lúcido e muito menos poeta, mas que sou português enquanto me deixarem, acrescentaria que esta gente, por muito fraca que seja, se tivesse alguma honra que restasse, matava-se. Temo que, como nem para isso têm coragem, um dia destes alguém lhes faça o favor! Pouco convicto, só posso dizer: vade retro satanás…

Por: Jorge Noutel*

* Deputado da Assembleia Municipal da Guarda eleito pelo Bloco de Esquerda

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