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A redondez do mundo

“ A cidade estava a arder…

E eu não estava a perceber.”*

de “SeQuiZeres”, Coimbra (88-90)

Aqui, na sua casa, com vista para a enorme enseada de areia amarela que é a actual famosa praia dourada do Porto Santo, Cristóvão Colombo deve ter tido a certeza intuitiva da redondez do mundo.

Há muitas coisas redondas no Porto Santo: o horizonte, os cabeços que delimitam a baía, castanhos e despidos, o ilhéu onde assenta o farol cilíndrico, os melões, as melancias, as cebolas, as uvas e as barrigas dos homens, mulheres e crianças que aqui vêm, em grande número, fazer praia _ os madeirenses _ e, também, da nova geração porto-santense.

Estão a ver o Alberto João Jardim? Pensavam, como eu, que a sua redondez bonacheirona fosse insólita? Pois não. Pelo que me foi dado ver, é prototípica da classe média-alta da ilha grande, assim como o tom de voz e as atitudes. Simpático, não é?

Os porto-santenses da velha geração não são gordos. São altos, magros, bebem cerveja Coral e, na sua maioria, não sabem usar uma coisa quadrada chamada caixa Multibanco, mandando os filhos e os netos “meter lá o cartão para tirar a massa”. Jogam dominó, à tardinha, no alpendre de um snack-bar arruinado, do qual resta, apenas, a tabuleta, lindíssima, ao estilo do oeste americano, mas ilustrada com a figura vetusta do nosso Infante, por cima e por baixo da qual se pode ler, respectivamente: Navegador Bar & Snacks, Johnnie Walker estlabished 1820.

Enquadrando o acesso ao espaço onde se agrupam as cadeiras e mesas desconjuntadas estão duas peças metálicas e redondas: duas das antigas balas que, do monte do Pico, eram disparadas contra os corsários por um canhão fornecido pela Coroa, ao tempo sob domínio filipino, mas que, por má-sorte ou ironia, nunca atingiam o mar mas apenas esta zona onde, mais tarde, surgiu a povoação, actual cidade, de Vila Baleira.

Redondo é também o fantástico bolo do caco que não é mais do que pão cozido numa frigideira e que, por isso, fica baixo, tostado e… boleado, herança dos tempos em que, por não haver lenha, o pão era cozido num caco de argila aquecida por incineração dos excrementos secos dos animais.

Redondas são, também, as bagas dos dragoeiros que restam, antiga árvore autóctone que, juntamente com os zimbreiros, revestiam por completo a desabitada ilha até à sua colonização, decretada pelo Infante nos princípios do século XV. Com a seiva dos dragoeiros, existentes apenas nos arquipélagos da Madeira e das Canárias, foram tingidas de vermelho, durante dois séculos, as vestes da corte e do clero português, espanhol e europeu.

Duas coisas, no Porto Santo, escapam à redondez: o referido monte do Pico, que pela sua agudeza inesperada, domina a paisagem e as mentes – são pequenos picos de agreste aspecto vulcânico que as crianças constroem na areia em vez dos habituais castelos – e … as batatas.

As batatas-doces da ilha do Porto Santo são uma acutilante homenagem à dureza da vida nesta ilha, na época pós-dragoal e pré-aeroporto, onde as fomes eram cíclicas e a vontade de fuga latente mas dificultada pelas autoridades. Os únicos barcos existentes destinavam-se ao transporte de cal, exportada do ilhéu de baixo para o Funchal, não tinham convés e as pessoas afogavam-se muito, como acontece actualmente aos marroquinos e aos cubanos que tentam alcançar o Sul da Europa ou a Florida.

Na ausência de outro produto verdadeiramente típico são batatas de Porto Santo que eu vou oferecer aos meus amigos.

*Desculpem se a minha crónica aparece descontextualizada da tragédia que se tem estado a viver no Continente, mas… “eu não estava a perceber”.

Por: Maria Massena

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