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A ratice compensa

Domingos Névoa subiu a pulso. E tanto esforço pesou na simpática pena que lhe foi aplicada. É verdade que o tribunal ficou a saber como trepou na vida: “Nisto não sou virgem. Conforme faço uma escriturazinha rapo dois mil euros aqui, dez mil acolá. Ponho isto num cofre para a gente ir fazendo umas ratices”. Foi isto que disse ao irmão do vereador Sá Fernandes, enquanto este gravava, para a polícia, uma tentativa de suborno. Mas a confissão não abalou as suas muito respeitáveis qualidades aos olhos do juiz. No primeiro caso em que há provas irrefutáveis de uma tentativa de corrupção a um agente político, a sentença é esta: cinco mil euros de multa. E mais nada.

Ao que parece, como o caso Bragaparques ainda não foi julgado, trata-se de corrupção activa para acto lícito. Esta absurda distinção entre acto lícito e ilícito em casos de corrupção faz com que seja coisa pouco grave comprar políticos, desde que em troca eles não decidam nada de ilegal. Às cabeças mais simples poderia ocorrer que a licitude ou não de um acto passa a ser irrelevante quando este resulte de um suborno. Foi assim que pensou o socialista João Cravinho quando quis acabar com esta distinção aberrante. Cravinho foi mandado para bem longe, o BE e o PSD resgataram a proposta e o PS decidiu não facilitar demasiado o combate à corrupção e chumbar a medida.

Domingos Névoa foi condenado a pagar ao Estado 2,5% do que estava disposto a gastar com um vereador. Sá Fernandes tentou, perante as televisões, mostrar que o seu empenhamento não foi em vão. Percebe-se o esforço pedagógico para que mais uns doidos honestos lhe sigam o exemplo e denunciem quem tente nova ratice. Mas, no fim do julgamento, Névoa deixou tudo bem claro: “hei-de continuar a fazer o que fiz até hoje”. Pelo resultado final, faz muitíssimo bem. Compensa.

<Subtitulo>A ordem pública

<Texto>Quando, em 1866, Gustave Courbet pintou o sexo de uma mulher causou grande agitação. A nudez não era novidade na pintura. Mas o realismo da imagem era insuportável. Ao que parece, continua a ser. O incómodo com as púbicas verdades foi grande na Feira do Livro de Braga, onde a imagem estava exposta ao olhar de todos. A família bracarense exigiu que a ordem natural das coisas, onde as mulheres não têm genitália, fosse reposta.

Ao ver tais vergonhas, a polícia apreendeu ali mesmo o material. Pornográfico, como só pode ser a natureza. Não sabia o agente da autoridade, enquanto tomava conta da ocorrência, que estava perante “A Origem do Mundo”. Nem, mesmo não o sabendo, ao olhar para aquele belíssimo quadro se agitou o seu espírito. Os censores sempre foram ignorantes por condição ou convicção e a ignorância nunca afectou a autoridade de ninguém. Chegada a asneira aos jornais a PSP acabou por apresentar outra razão, que, como a censura, traz do passado recente lembranças bem vivas: estava em causa a alteração da ordem pública. Voltámos ao tempo em que o Estado nos poupa à desordem dos desejos carnais ou à simples visão de uma vagina. E até hesito em usar esta palavra num jornal sério. Não sei se as almas mais sensíveis aguentam saber que elas não habitam apenas canais codificados da TV Cabo e páginas de Internet protegidas por filtros parentais. Elas andam por aí, aos milhões. Sempre prontas para nos atormentar. Quem nos protege?

Por: Daniel Oliveira

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