Nas últimas semanas, o discurso político tem insistido com frequência na problemática da qualidade da democracia. Como acontece com qualquer ideia ou conceito tornados chavão, também este acaba apropriado por quem o utiliza, assumindo finalmente sentidos e propósitos muito distintos. Na política, ou em qualquer outro domínio da sociedade, as ideias são sempre para alguém e para algum propósito, o que condena esta actividade a girar em torno da discussão, do confronto e da dificuldade de entendimento. Não é uma tragédia; é assim mesmo que as coisas acontecem e a democracia, com mais ou menos qualidade, é feita da oposição de ideias, projectos e entendimentos. O episódio que envolveu, na semana passada, o ministro Pinho no Parlamento depressa foi colocado no centro da questão. Para Cavaco Silva, esse episódio é intolerável precisamente porque degrada a qualidade da relação entre actores políticos e, portanto, da democracia. Do ponto de vista do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã mostrou um entendimento diferente ao considerar que o próprio presidente da República pôs em causa a qualidade da democracia, neste caso das instituições, na forma como geriu o caso Dias Loureiro no Conselho de Estado. É difícil que as ideias não sirvam de armas de arremesso (até porque é nisso que elas são boas), sobretudo no contexto da maratona eleitoral que estamos a atravessar até Outubro. Como tenho insistindo, a abstenção nos actos eleitorais é muitas vezes o sinal da incapacidade de decidir face à argumentação usada na luta política, tantas vezes esconsa e enviesada, ou da desconfiança e repulsa face à própria lógica antitética da política e das lutas travadas em seu nome.
Se é verdade que os actores políticos se devem pautar por normas de decência que emanam, antes de mais, do bom senso, parece-me inquestionável que é no funcionamento das instituições políticas que radica o essencial da qualidade da democracia. Quer isto dizer que ela depende essencialmente da possibilidade de participação dos cidadãos no jogo político para lá do estado; da possibilidade de fiscalização da actuação do governo em diferentes sedes; da real liberdade de imprensa (num mundo em que os grupos económicos controlam a produção de informação e induzem a autocensura dos jornalistas); do processo de recrutamento dentro dos partidos políticos; da independência da justiça e do seu acesso equânime por toda a cidadania. E depende, claro está, da lei de financiamento dos partidos políticos e da lei eleitoral, e da forma como o estado se encontra ordenado e o poder repartido na base territorial, ou seja, da sua maior ou menor centralização e subsidiariedade. Por tudo isto, torna-se óbvio que a democracia não é um estado final; é um processo longo cuja consolidação depende dos avanços e recuos verificados em cada uma destas esferas e em muitas outras.
Em tempo de eleições, e por uma questão de oportunidade, a qualidade da democracia tem sido associada à relação entre representantes e representados, eleitos (ou candidatos a eleitos) e eleitores. É neste sentido que muitos se têm pronunciado a favor dos círculos uninominais, ao estilo britânico, e têm insistido nas vantagens do sistema. A alteração passaria por um novo mapa eleitoral e uma nova divisão que deixaria de ter os distritos administrativos como base da representação eleitoral. Por cada novo distrito eleitoral, apenas um deputado seria eleito – o que obtivesse mais votos –, dando-lhe mais visibilidade e responsabilidade face aos seus constituintes. Outra prática comum na Europa é a constituição de listas abertas. Neste caso, a eleição deixa de ser simplesmente colocar a cruz à frentes do partido escolhido para passar a ser um exercício de ordenação dos candidatos da lista escolhida por ordem de preferência. Todas as alterações têm as suas vantagens, mas é comum exagerar a sua capacidade de mudança do sistema político. Se não vejamos a questão dos círculos uninominais. Numa parte significativa de Portugal – no interior –, já é este grosso modo o sistema aplicado. Quando temos distritos que elegem dois, três e quatro deputados – casos de Bragança, Guarda, Castelo Branco, Portalegre, Évora e Beja – não seria difícil a aplicação do princípio da proximidade entre eleitos e eleitores. A verdade é que ela não é maior do que nos círculos que elegem mais deputados, como Lisboa, Porto, Braga ou Setúbal. Elegendo quatro deputados, por enquanto, nada impede os eleitores do distrito da Guarda de conhecer directamente os seus representantes na Assembleia da República e de lhes pedir contas da sua actividade. Isso não acontece na actualidade, nem passará a acontecer com a mera mudança da lei eleitoral.
Qualquer mudança nesta matéria passará necessariamente por um compromisso sério dos candidatos (às legislativas e às autárquicas) face às suas comunidades e pela vontade dos eleitores de lhes pedir contas. Agora que se aproxima o Verão e que ele será quente, é hora de exigir a todos os candidatos um pacto com a política, que o mesmo é dizer o compromisso de servir a comunidade e contribuir para a qualidade da democracia.
Por: Marcos Farias Ferreira