Não é apenas a Ucrânia e a Rússia, os russos da Crimeia, os ucranianos da Crimeia e os tártaros da Crimeia. Num certo sentido, todos fazemos parte do mundo pós-soviético porque enfrentamos questões definidoras da convivência humana em emergência desde o colapso do sovietismo no fim do século passado. Desaparecido o bipolarismo que opunha o Ocidente ao mundo soviético e fazia deste, ao mesmo tempo, o inimigo íntimo e a garantia ontológica de adesão aos valores justos, eis que emergem múltiplos eixos de confrontação e redefinição da convivência humana no plano global. A filosofia moral é hoje mais precisa que nunca como guia na reflexão e na ação sobre o que fazer, sobre como viver em conjunto e como evitar as escolhas maniqueístas de novos inimigos e bodes expiatórios. Mas ao contrário do que muitos acreditámos quando assistimos, em direto, às revoluções de veludo de 1989, e enquanto líamos avidamente os discursos de Václav Havel, o mundo pós-soviético é um mundo em que avança o cinismo ultramontano. O mundo dominado pela ameaça soviética era um mundo de opções simplistas, o bem e o mal como revelações divinas inquestionáveis, as essências da vida e da morte, da biologia e da geopolítica ao serviço de uma praxis segura e inabalável. Os inimigos costumam servir para isso, para tornar as adesões e fidelidades mais imediatas, irrefletidas e inquestionadas enquanto fortalecem as identidades exclusivas.
Os mundos bipolares são produto da centralidade do bem contra o mal na filosofia moral e resistem no imaginário coletivo como resiste a luta de Flash Gordon contra o Imperador Ming num universo paralelo do imaginário juvenil. O mundo pós-soviético é um mundo de ansiedades cartesianas renovadas sobre o bem e o mal, onde os poderes estabelecidos assumem uma postura cínica face aos valores (não acreditam em nada) e os manipulam a favor das suas agendas contingentes. Todos os valores são instrumentalizados e todas as formas se tornam meros rituais na legitimação do poder. (Não me sai da ideia a foto do procurador-geral ucraniano vestido de imperador romano nem a estética ceausesquiana das opulentas mansões da elite política do país.) O problema ucraniano deriva da reconfiguração dos dilemas bipolares e da sua reorganização em torno dos novos eixos do bem e do mal. Vista de Kiev (de Donetsk e Simferopol), a Rússia representa o bem ou o mal no mundo pós-soviético em ebulição? Ela é europeia ou é asiática, é libertadora ou escravizadora (para recuperar os opostos na querela literária que opôs Kundera a Brodsky)? E a Europa? Vista de Lisboa ou de Atenas, em que se tornou a Europa pós-soviética e a sua capacidade de obrigar? É libertadora ou escravizadora? É catalisadora da correção financeira modernizadora, do ajustamento e de uma nova transição económica ou promotora de desigualdades e dependências mais profundas?
Combater o cinismo é a primeira transformação urgente a fazer. O cinismo de quem manda mas também o de quem obedece, a instrumentalização dos valores e a centralidade da oposição maniqueísta entre o bem e o mal. Flash Gordon contra o Imperador Ming é um conto de crianças. O mundo não é assim, não tem que ser assim. É preciso deslocar do centro da filosofia moral e da ação a luta entre o bem e o mal para as recentrar na convivência e na tolerância haveliana do estender da mão ao que é diferente, àquilo com que não nos identificamos e que temos dificuldade em compreender. Porém, a matriz pós-soviética do mundo em que vivemos não é muito reconfortante quando substitui as confrontações bipolares do passado pela fragmentação de novas confrontações. As proclamações europeias em Kiev por grupos de extrema-direita, o programa austeritário do FMI e de Bruxelas para a crise europeia, a homofobia como bandeira agitada em Paris ou Moscovo, os raides das milícias cristãs em Londres, o Corão como instrumento da violência de género contra as mulheres islâmicas, a reverência cega aos mercados, a cleptocracia das elites africanas ou o ofuscante recurso à ideologia em Caracas são alguns exemplos do cinismo de quem manda, e de quem obedece, que é urgente transformar.
Por: Marcos Farias Ferreira