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A política «on line»

Razão e Região

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Neste início de 2006, com o desejo de um óptimo ano para todos os leitores, e quase no fim de um ciclo de eleições que gerou um Governo, órgãos autárquicos e, em breve, um Presidente da República, reproponho aqui, com ligeiras alterações, um meu artigo, publicado no «Diário Económico» em 2005, que procura radiografar a política tal como a estamos a viver hoje.

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Não há dúvida de que estamos a assistir a uma poderosa aceleração do tempo da deliberação democrática. Elemento central desta aceleração é o poder mediático. Porque é no palco mediático que, hoje, decorre o processo deliberativo.

A comunicação é, hoje, instantânea e está sempre «on line». Vivemos, de facto, uma espécie de «revolução industrial» na comunicação. Estamos em regime de produção industrial de informação. Poder-se-ia até dizer que já não é o cidadão que procura a informação, mas que é a informação – qual mercadoria – que procura o cidadão.

Esta situação não poderia ser alheia ao processo de deliberação democrática. Que no essencial decorre em duas fases: a primeira, por ordem lógica, é naturalmente a fase eleitoral, onde ocorre a decisão material, através da colocação de um voto na urna; a segunda corresponde ao processo de construção (ou de desconstrução) do consenso. Em ambas as fases o processo de deliberação democrática funda-se (deve fundar-se) numa dialéctica argumentativa racional (Habermas) que procura produzir resultados que se aproximem o mais possível do interesse geral ou público. Uma fase é, poder-se-ia dizer, mais intensiva (campanhas eleitorais); a outra é mais extensiva (formação da opinião pública). Na democracia representativa tradicional a fase determinante e quase exclusiva de todo o processo era a fase intensiva e decisional (campanha, seguida do voto). Na chamada democracia pós-representativa a fase determinante de todo o processo é a fase extensiva. Na fase intensiva registam-se tão-só pequenos ajustamentos que, todavia, podem ser decisivos.

Ora, a verdade é que estão a verificar-se profundas mutações em todo o processo deliberativo: 1) a dialéctica argumentativa racional cedeu o lugar às «intensities» emocionais; 2) a dialéctica construtiva – aquilo a que Hegel chamava «Aufhebung» – cedeu o lugar a uma dialéctica negativa ou destrutiva; 3) o estratégico «interesse público» cedeu o lugar ao imediatismo do «interesse do público»; e 4) a fase intensiva tornou-se residual relativamente à fase extensiva.

É facilmente comprovável que a retórica persuasiva para a conquista de influência veio substituir a dialéctica argumentativa para a obtenção de saber. De resto, a linguagem sofreu uma viragem radical, com a imagem a substituir a linguagem analítica, própria da «typographic mind», com o «homo videns» a substituir o «homo sapiens» e com a emoção a substituir a razão. Por outro lado, e em clara conexão com este primeiro aspecto, verifica-se que a dimensão destrutiva do discurso veio substituir a dimensão construtiva, lá onde se perdeu a dimensão do «interesse público» para se ganhar os favores do público espectador. Com efeito, o discurso destrutivo é, por um lado, mais apelativo do que o discurso construtivo e, por outro, mais fácil. Este discurso, traduzido politicamente, exprime-se como desconstrução permanente do poder institucional de origem electiva, justificando-se como «cão de guarda» da opinião pública. A dialéctica para o consenso parece, assim, ter cedido o lugar a uma nova dialéctica para a dissensão. É claro que, retoricamente, o pano de fundo deste exercício negativo da crítica é sempre o «interesse público». A verdade, todavia, é que este exercício da crítica tem um exigente reverso: não o «interesse público», mas o «interesse do público». Interesses que não coincidem obrigatoriamente. Até porque o primeiro possui necessariamente uma dimensão estratégica de futuro enquanto o segundo vive do imediatismo, do presente. Esta situação é visível quer no plano do exercício da actividade política de oposição quer no plano da opinião pública: ambos, partidos e «media», procuram reforçar o poder através da captação de consenso e de quotas de mercado («audiência»). E é este plano inclinado para as quotas de mercado eleitoral ou de audiência que fazem deslizar o discurso do plano do «interesse público» para o plano do «interesse do público». Finalmente, e porque o discurso político tende a ficar cada vez mais homologado ao discurso mercantil das quotas de mercado em audiência, o que está cada vez mais a verificar-se é a mediatização integral do discurso político com a progressiva residualização dos «agentes orgânicos da política» e o protagonismo político galopante dos «agentes orgânicos do poder mediático». Assim sendo, compreende-se que o verdadeiro tempo do discurso político não seja o tempo de campanha, mas sim o tempo de afirmação do protagonismo mediático. De certo modo, este discurso político já está «on line». O que altera radicalmente os pressupostos da democracia representativa.

Por: João de Almeida Santos

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