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A Net e a multidão

Razão e Região

Num interessante artigo no jornal «Público» (08.09.2007), «Está a Internet a matar a nossa cultura?», a propósito de um livro de Andrew Keen sobre a Net, José Pacheco Pereira faz uma exaustiva descrição do «caos» da rede, reconhece que a «horda» dos Internautas está, de facto, a ameaçar a cultura (entenda-se a alta cultura), mas termina por reconhecer que se trata, apesar de tudo, de uma tecnologia que produziu milagres para quem, antes, se via impedido de qualquer aproximação imediata às áreas de consumo cultural que a Net hoje faculta. Diz mais. Fala da revolução social que constituiu a chamada civilização de massas. E conclui dizendo que, mesmo que a Net assuste as elites culturais, mesmo assim há que valorizar esta abertura de portas a esse universo espiritual onde habita a cultura.

Eu diria mais: isto não se verifica só no domínio da cultura. Verifica-se também na política, na economia, na comunicação. Quando se fala de civilização pós-industrial, de civilização pós-moderna ou de democracia pós-representativa está-se a falar de uma ruptura de paradigma.

Ora, a Net veio instalar definitivamente a ruptura nos campos já extremados da democracia representativa, da comunicação, da indústria, do consumo, da cultura. E não é coisa de anteontem. O Adorno já nos anos ‘40 criticava, na «Dialéctica do Iluminismo», as «indústrias culturais», precisamente em nome da autêntica cultura, não alienada, numa visão crítica da civilização capitalista e dos seus supostos produtos culturais de plástico para consumo e alienação das massas. Como se se tratasse de autênticos arremedos culturais. Hoje, essa confecção capitalista e instrumental de produtos culturais de plástico, bem distintos dos autênticos produtos culturais, com «aura», passou a estar sujeita ao escrutínio da Net. Na rede, de acesso universal – acesso à informação e à difusão de informação -, misturam-se permanentemente produtos de «indústria cultural» com produtos com «aura», num universo algo caótico, num incrível intercâmbio «simbiótico» sem fronteiras nem referências. Se as indústrias culturais eram geradas com ordem, referências e fronteiras, agora, com a rede, vive-se no reino do aleatório. Manuel Castells, que da sociedade em rede é especialista, avançou com um interessante conceito que procura traduzir funcionalmente a nova realidade: «self mass communication». Ou o reposicionamento do indivíduo na sociedade de massas.

Do que se trata é do revolucionamento do sistema social em todas as frentes. E, por isso, também na frente cultural e científica. É que as novas tecnologias são cada vez mais importantes próteses cognitivas e instrumentais do homem. E quando ultrapassam o plano individual ou de elite, massificando-se, elas acabam por induzir efeitos sociais de alcance histórico. Aconteceu com a imprensa, com a robótica industrial, com os computadores ou com a telefonia móvel. Quem é que não compreendeu já a força do telemóvel na reconfiguração das relações sociais e humanas? O telemóvel tornou-se um bem essencial primário de que ninguém hoje pode prescindir. A rede alastra a um ritmo impressionante…

Se o que está a mudar, em todas as frentes, é toda a sociedade, o grande problema é que ainda não há respostas sobre como reconfigurar a nova sociedade emergente em função das enormes mutações sociais que o uso massificado das tecnologias está a provocar, sobre como reorientar os mecanismos sociais de que dispomos para canalizar o imenso magma social que se está a mover a uma velocidade antes inimaginável. E se isto é necessário na cultura, não o é menos na política ou na economia. É ver os debates que estão a ocorrer um pouco por todo o lado sobre a democracia pós-representativa!

Não, a Internet não está a matar a nossa cultura. Está a democratizá-la, com todas as consequências que isso tem sobre as práticas culturais difusas: no acesso, na produção e na difusão cultural. Na própria ideia de cultura. Walter Benjamin, em finais dos anos ’30, já antevira esta revolução cultural em «Obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica»: o fim da «aura», a emergência do anónimo no espaço cultural e a ruptura da fronteira entre autor e actor.

É verdade. Hoje todos têm acesso, sem sair de casa, ao espaço público e a uma biblioteca ou a uma mediateca de dimensão mundial. Mas é claro que é preciso saber ler, ver e ouvir…

Por: João de Almeida Santos

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