Numa altura em que não há esfera da actividade humana que não procure potenciar a sua componente de espectáculo, há filmes que parecem querer mostrar que a função do cinema não se resume ao entretenimento e que a procura deste não deve ser a única razão a levar-nos a entrar numa sala de cinema. É inegável que o cinema está associado ao espectáculo e ao divertimento e que a admiração inspirada nos diferentes públicos, desde a sua génese, é fruto da potencialidade que demonstra para nos transpor para mundos e tempos inverosímeis. É certo que o cinema se impôs como meio de comunicação de massas através de uma relação ‘espectacular’ que pede das massas, entretanto transformadas em audiência, a suspensão momentânea da credulidade. A evolução da tecnologia não fez mais do que acentuar essa relação espectacular, na exacta medida em que a suspensão da credulidade das audiências foi exigindo renovados instrumentos. E tudo isto numa altura em que o cinema perde milhões de espectadores por ano, por todo o mundo, Portugal incluído. Sendo o único tipo de cinema que é distribuído na generalidade das salas portuguesas, o cinema entretenimento vai perdendo adeptos em benefício do clube de vídeo ou da televisão por cabo. A suspensão momentânea da credulidade tem os dias contados já que, actualmente, o espectador decide não se deslocar até à grande tela (qualquer que seja a razão é sempre uma decisão, não vale a pena escamotear a realidade), decide não estar em silêncio numa sala completamente escura e rodeado de desconhecidos, decide não estar com atenção do princípio ao fim, decide não aproveitar o filme enquanto ele está em cartaz. É cada vez mais em casa que se desfruta do cinema, um cinema pequeno – por muito grande e muito plana que seja a televisão – e visto a sorvos, nos intervalos do quotidiano ou quando este deixa. E mesmo nas salas de cinema, já começa a haver quem não esteja para suspensões da credulidade e não se importe mesmo de perder parte da acção para conferir as mensagens do telemóvel… O cinema visto a sorvos também já chegou às salas. Numa altura em que o cinema espectáculo é derrotado pelas suas próprias armas, é cada vez mais importante realçar que o cinema é algo mais do que entretenimento; acima de tudo, o cinema é um poderoso instrumento para descrever, examinar e criticar a sociedade em que vivemos, frequentemente a partir de estórias e personagens marginais e pouco ou nada edificantes, de estruturação mínima ou até incoerente. Outras vezes, o cinema transforma-se em instrumento da memória humana, de denúncia do esquecimento em que frequentemente caem as grandes misérias da humanidade – acompanhadas pelas suas pequenas estórias com rosto e nome próprio que continuam a assombrar o presente. Para lá das parangonas e das agendas dos outros meios de comunicação social. A vida secreta das palavras, de Isabel Coixet e Sem destino, de Lajos Koltai, são ambos exemplo deste tipo de cinema e estão ambos em cartaz neste momento. Não se trata de entretenimento, mas dão-nos uma boa ideia de por que ainda vale a pena ir ao cinema. E do que é a vitalidade e a variedade do cinema feito na Europa.
Por: Marcos Farias Ferreira