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A justiça e os «media»

Razão e Região

1. A recentíssima sentença sobre os arguidos do processo «Casa Pia» veio pôr de novo na agenda pública a relação entre «media» e processos sociais. Vejamos o caso da famosa conferência de imprensa de Carlos Cruz. Após oito anos de processo, o tribunal emite um veredicto, onde quase todos os réus são condenados, e, acto contínuo, um deles «grita», em todos os telejornais, em prime time, para vários milhões de pessoas, a sua inocência, ao mesmo tempo que condena, com uma brutalidade inaudita (e alguma arrogância), o tribunal que o condenou.

2. Este facto suscita-me vários comentários: a) Carlos Cruz tem direito à sua contra-sentença em prime time (condenando o tribunal que o condenou e passando de acusado a acusador), ao mesmo tempo que dispõe de todos os recursos processuais que a lei contempla; b) os juízes não podem, nem devem, usar o direito ao contraditório mediático, por razões de carácter institucional, ao mesmo tempo que irão ver as suas sentenças ser avaliadas por vários tribunais superiores, caso haja recurso, como é previsível; c) é claro que, enquanto no caso de Carlos Cruz se trata de argumentação pública em defesa da sua eventual inocência, no caso do tribunal trata-se de uma decisão que, não fossem os recursos, privaria, de facto, o condenado da sua liberdade; d) Carlos Cruz, num passe de retórica mediática, transforma o seu caso num problema sistémico, identificando a sua luta como luta pelo futuro da justiça em Portugal; e) ao contrário de outros réus condenados, até com penas mais pesadas, Carlos Cruz, no momento-chave da condenação, usa instrumentalmente um sistema mediático do qual foi parte orgânica durante décadas: tendo perdido a causa em tribunal, procura ganhá-la na opinião pública, desencadeando uma vasta ofensiva que vai da NET às televisões.

3. O crime que lhe é imputado é hediondo. A sua situação neste momento é de limbo, uma vez que, tendo sido efectivamente condenado, a sua condenação só transitará em julgado depois de esgotados todos os recursos e se, entretanto, não houver prescrição. Por isso, a sua situação pessoal é socialmente penosa, porque, admitindo, ainda, formalmente, novas decisões em instâncias superiores, ao mesmo tempo já arrasta consigo uma condenação efectiva, logo, uma incontornável sanção social. Daí a sua reacção. Mas daí também poderia decorrer uma reacção de outro tipo que não a da guerra mediática contra o poder judicial. Esta última, como se vê, resultou de uma leitura muito actual do estado da relação da justiça com os media, ao procurar combater a sua causa não só no plano processual, mas também no plano da opinião pública.

4. Este caso mostra bem como os mecanismos reguladores da vida social estão a sofrer profundas mutações. O poder judicial, perante a emergência dos «media» e da rede como lugares de exercício permanente de um poder de tipo deliberativo, encontra-se hoje enredado numa complexa teia de fluxos e refluxos que lhe condiciona fortemente a acção. E não só porque as alianças tácticas que muitas vezes tem vindo a fazer com os «media» lhe estão a causar um enorme desgaste de credibilidade, mas também porque perdeu aquela aura que outrora lhe conferia uma força e uma legitimidade que dificilmente podiam ser postas em causa. Hoje, a divulgação dos processos, as fugas de informação, a permanente construção de narrativas mediáticas acerca dos processos, a mediatização vertiginosa dos protagonistas, o uso instrumental de peças do processo, as sentenças mediáticas relativizam de tal modo a instância judicial que acabam por desvalorizar as suas decisões, quase ao ponto do descrédito. Isto, sem falar dos males endémicos do sistema, como, por exemplo, a morosidade ou o garantismo radical (doença infantil da democracia, como uma vez lhe chamei). Ora, sabendo nós que o sistema judicial é um pilar estrutural da democracia, a sua fragilização produz danos que vão para além dele, atingindo directamente as funções vitais da democracia representativa. A importância que atribuo a esta contra-sentença de Carlos Cruz perante os telejornais, em prime time, a esta deslegitimação mediática do sistema, apesar de este lhe garantir vários recursos para instâncias superiores, deriva precisamente do facto de já não serem consideradas suficientes todas as garantias processuais que o sistema concede aos arguidos, e que muitos consideram excessivas, sendo hoje possível, e quase obrigatório, desencadear processos paralelos na comunicação social que não só pressionam os tribunais como acabam por produzir sentenças mais rápidas e mesmo de sinal contrário às destes. O relativismo universal, que durante muito tempo era terreno de culto dos filósofos, entrou definitiva e infelizmente no sistema judicial, transformando a exigência absoluta de produção de verdade social num complexo jogo de sombras, onde já ninguém sabe o que é falso e o que é verdadeiro. É a isto que o hipergarantismo (garantismo com reforço mediático) nos está a levar.

Por: João de Almeida Santos

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