Arquivo

«A ironia é algo que privilegio na vida e na poesia»

Cara a Cara – Américo Rodrigues

P – Regressou à poesia com a edição recente de um novo livro, “Arquivo Morto”. Houve alguma razão para ter estado tanto tempo sem editar nenhuma obra?

R – Em 2015 editei três peças de teatro e em 2016 um outro texto dramático. O último livro de poesia que publiquei foi “Ponto Cego”, em 2013. Em 2014 editei um livro prioritariamente dirigido às crianças intitulado “A lontra é um pouco tontra”. Portanto, tenho editado o que tenho escrito. Ao mesmo tempo tenho regressado ao trabalho de ator e de encenador. Voltei também à performance de poesia sonora e improvisação vocal. E tenho participado em festivais. Porém, nunca tive qualquer obsessão em editar. Quando entendo que existe uma obra (e não um montinho de poemas) penso na edição. Seleciono várias vezes e faço muitas correções. E depois organizo os poemas, pensando numa estrutura, num título, nas diferentes partes e também no objeto físico. No caso do “Arquivo Morto, o livro reúne poemas escritos entre o final de 2013 e o final de 2016. Um período duríssimo para mim.

P – Que “Arquivo” é o seu?

R – “Arquivo morto” é o “espaço” (físico ou não) onde se armazenam os papéis, os documentos, as palavras ou fotos a que julgamos não voltar por não precisarmos deles. No entanto, quando o leitor abre esta minha obra verifica que, aparentemente, os papéis e as fotos são de grande importância e que os poemas são sobre temas fundamentais (a morte da mãe e do pai, por exemplo). O título é, pois, irónico. E a ironia é algo que eu privilegio na vida e na poesia. A obra é, fundamentalmente, acerca da perda. De uma certa ideia de perda. Perda da memória, dos afetos, do amor, do território, da identidade, da ideologia, do futuro. Da perda de quase tudo. O sujeito poético refere-se sem rodeios à perda da mãe e do pai, por exemplo, mas também da ligação à sua terra, que o marginalizou, que o tratou mal. A maior parte dos poemas são marcados pelo desânimo, pela nostalgia, pela amargura. E, a terminar, dois poemas torrenciais. A obra é intimista. Às vezes fazem-se revelações tão íntimas, tão privadas, que expõem em demasia o sujeito poético e até o autor do livro. Mas não esqueçamos que a obra se chama “Arquivo Morto”. O autor escreve para um arquivo que dificilmente se tornará vivo e presente. Referem-se nomes, números e pequenos pormenores, aparentemente sem importância. No entanto, constituem-se como estilhaços da memória.

P – Como está organizado o livro?

R – A obra divide-se em várias partes. A mais intensa será a que reúne poemas sobre uma mãe que vai perdendo a memória e de um filho que assiste a essa perda diária sem poder fazer nada para contrariar uma morte anunciada. Sim, o livro é também sobre a morte. As grandes mortes que marcam a vida do sujeito poético e as pequeniníssimas mortes do dia a dia. A morte de uma cidade que se amou, por exemplo, agora uma lembrança de que se quer afastar. A morte das pessoas, a morte das coisas, a morte da memória coletiva. Há muitos anos, o poeta António Ramos Rosa (citado num poema) disse-me que a minha poesia era marcada por «uma insanável ferida original». Mas nunca escrevi poemas tão marcados pela dor, pela ausência ou pelo esquecimento. Poemas que na sua grande maioria se concentram no essencial, no que é mesmo preciso dizer, tendo sido alvo de depuração sistemática. Mas no “Arquivo Morto” também se publicam poemas de uma violência inusitada, talvez dispensável, mas com um lugar cativo num arquivo que estará morto (e que ninguém irá procurar).

P – Trata-se, então, de um livro autobiográfico.

R – Alguns dos poemas partem da observação do real, transfigurado pelo olhar do poeta. Aí o poeta demora-se na enumeração, na descrição, na listagem, no pormenor. A rotina de um dia atrás de outro. Vida sem projeto, sem futuro, sem nenhuma esperança. É um livro sofrido: poemas que, na sua fragilidade, podem não resistir ao sopro dos homens.

P – Como objeto gráfico, é um trabalho original?

R – Julgo que sim. A capa e orientação gráfica são da autoria de um dos mais surpreendentes designers portugueses, Jorge dos Reis. O título, por exemplo, surge na vertical, com um tipo de letra original que se desenvolve na horizontalidade. No meio do livro, como coisas abandonadas, aparecem fotos que revelam aspetos da vida do autor e que se relacionam com algumas situações referidas nos poemas. Mais uma vez a vida (real) intromete-se na poesia (mãe, pai, cão, terra, árvores). Porém, para um leitor que nada saiba acerca da natureza e circunstâncias deste livro… apenas… verá um homem, uma mulher, paisagens, pedras e um rapaz caído sobre a linha do comboio.

Em cada exemplar do livro o leitor encontra três imagens, como objetos separados da obra. Portanto, não há nenhum exemplar igual pois o conjunto de fotos (20) é associado de forma diferente de livro para livro.

P – Que projetos tem para futuras edições?

R – Daqui a meses vai sair uma obra que resulta da minha colaboração com Jorge dos Reis. Eu escrevi e ele orientou graficamente a edição. É sobre uma toupeira que não sabe ou não quer entrar na entrada e sair na saída e às vezes entra na saía e sai na entrada. Uma confusão! Parece que é para crianças mas o Manuel António Pina já explicou isso há muito tempo: o que “é” para crianças “é” também para (alguns) adultos. Estou também a iniciar o processo de escrita de oito grandes entrevistas a reclusos do Estabelecimento Prisional da Guarda. Farei o “retrato” de pessoas que, por esta ou aquela razão, foram parar a uma prisão. Histórias de vidas.

Perfil:

Idade: 56 anos

Profissão: Técnico de Cultura

Naturalidade: Barracão (Guarda)

Currículo: Licenciatura em Língua e Cultura Portuguesas (UBI) e mestrado em Ciências da Fala, com uma tese sobre “As emoções na fala” (U. Aveiro). Foi animador cultural no FAOJ e na Câmara da Guarda. Co- fundador do Aquilo, da Luzlinar e do CalaFrio. Foi diretor artístico do Teatro Municipal da Guarda entre 2005 e 2013. Foi-lhe atribuída a Medalha de Mérito Cultural, pelo Ministério da Cultura (2012). Atualmente coordena a Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço.

Filme preferido: A obra de Werner Hertzog, entre outros

Livro preferido: A obra de António Ramos Rosa, entre outros

Américo Rodrigues

Sobre o autor

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