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A inutilidade das coisas

É utopia falar de uma casa inacabada ou de uns degraus em que a sombra se esquece de pousar. Será utopia pegar na mão que se inventa e levá-la às montanhas brancas onde os cavalos selvagens vigiam a luz. O tempo a consumir-se num roer de unhas, naquelas tardes de espera pelo homem da nossa vida. O grito do fundo de um poço onde alguém esfria a alma. A noite mal iluminada carregada de uma insónia amarelecida. O toque no reverso da pele. A saliva a alagar a boca e uma náusea a pedir consentimento.

A luta corpo a corpo numa ilha imaginária não é utopia. Um não lugar onde a razão se deixe vencer pelo devaneio. Homens colossais tatuados com a repulsa do real. Milhares de anos-luz em busca de uma quimera recusando o ouro e a prata. Pedras preciosas esmagadas num puro pó estelar. Nada saber da luz que abre a porta ao absoluto.

Será utopia a completa nudez de litorais na delonga de istmos e arquipélagos. Mãos ásperas a cavar sendas discutíveis. A dúvida de que a um passo se siga outro passo. E, no entanto, persistir. Como se o tempo nunca tivesse existido ou fosse pintado de angústia. Ecos de sombra estampados nos rostos que a claridade da noite vincaram. Há sempre uma linha de força a morder o negrume. O despertar é o prolongamento do duelo. As pálpebras adensam-se em contra luz. Só a visão da água purifica – dá-me dessa água.

Cruzar istmos e arquipélagos é renunciar ao silêncio e às mãos lisas. Ao choro quente dos vulcões, às montanhas por criar. É abdicar de ascender aos limites balizados para de lá mergulhar num mar. Cada barco teria um cais demarcado pela solidão. Nenhum farol a assinalar a rota. Bússolas desmagnetizadas num desnorte artificial. E os homens enfraquecidos a arrastarem-se até às raízes de árvores sedimentadas. Cães de guarda enroscados em si próprios, surdos e absortos no vazio.

Os homens ainda não sabem que o estalido de vultos incógnitos abalroam os olhares, e se ampliam numa amálgama até ali escondida. Uma espécie de jogo entre um real que se rejeita e um ideal que se espera e deseja precipita as vontades. Outras vezes, longos diálogos ampliam os rumos ou dilaceram os mapas. A demanda de lugares que não existem é ambígua. Alimenta-se de incertezas e aceitações. O areal que espera a vaga vigorosa onde, afinal, o sal não chega. As grutas ocas, esconderijos de leões-marinhos e de navegantes com cordas debruadas nos olhos.

Pode ser que um dia Rafael Hitlodeu se encontre com Thomas More, algures em Antuérpia, e lhe conte daquela ilha idealizada onde os habitantes praticam as virtudes da temperança e da moderação. Não é fácil viver num lugar que não existe. Talvez por isso, nesse não lugar seja possível a razão humana resolver com isenção as questões do bem comum. Acredito que Thomas More lhe daria o nome de Utopia. Ou talvez esta minha expectativa não passe de uma genuína utopia.

Por: Maria Afonso

Comentários dos nossos leitores
Manuel Pereira manuel-pereira@sapo.pt
Comentário:
Um texto lindo, eivado de poesia e de sentido do real poético da vida. Um quase-Pessoa poético em prosa; uma quase-utopia verdadeiramente conseguida. Um quase-nada que é tudo e justifica a utopia da procura da felicidade humana. Obrigado, Maria.
 
Isabel gatamia.barbara@ gmail.com
Comentário:
Como é possivel uma prosa onde cada palavra respira poesia?! Será utopia se eu disser que penso que todos vivemos num lugar que não existe?
 

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