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A Infância de Jesus de Cotzee ou a parábola da sociedade atual…

Opinião – Ovo de Colombo

O novo romance do escritor sul-africano, Prémio Nobel da Literatura em 2003, era há muito esperado pelos seus leitores: A infância de Jesus. A escrita ética de Cotzee, a sua densidade narrativa e a complexidade dos seus enredos regressaram em força para deleite dos seus seguidores.

Um homem e um menino, acabados de sair de um campo de refugiados, chegam à estranha cidade de Novilla, cidade ficcional sem referentes temporais concretos, mas construída com elementos que nos permitem reconhecer cenários reais tristemente conhecidos: o cenário lembra o dos regimes totalitários, em Guerra, com racionamentos vários, controle estatal, vestuário simples, escassez de alimentos, generalizada falta de afeto nas relações entre os indivíduos.

David, o menino órfão, sensível e inteligente, e Simón, o homem seu protetor, tentam sobreviver num mundo estranho e diferente, um mundo onde são estrangeiros, forçados a apagar as suas memórias e as suas histórias. Inadaptado e insatisfeito, ainda que ansioso por compreender e ser aceite, Simón tenta fazer valer os direitos de alguém cujo corpo continua impregnado de memórias.

Se o título nos poderia sugerir uma revisão autobiografista da vida de Jesus Cristo, muito longe disso nos leva este novo romance de Cotzee. Cristo, os Evangelhos estão presentes intertextualmente no texto, mas de forma mitigada, surda e indireta. Este menino órfão, perdido de pai e de mãe, com uma intuição especial e uma inteligência diferente, pode bem ser o novo Jesus, deslocado num tempo e num espaço que metaforicamente simbolizam as sociedades ocidentais. Sociedades hiper-reguladas, demasiado estruturadas, quase assépticas… Em que o humano se perde, onde não há lugar para excessos, nem para emoções. Lugares onde muito menos há espaço para a diferença.

Convidamos, assim, o leitor a deixar-se conduzir por esta estranha parábola que nos pode levar a questionar o tempo em que vivemos, imergindo-nos numa história da qual dificilmente queremos sair.

Ana Teresa Peixinho*

*Professora da Universidade de Coimbra

Próxima semana: Diana Pereira

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