Arquivo

À espera da hegemonia benigna

Theatrum mundi

Muita gente não gostou do discurso de Barack Obama, na tomada de posse que o tornou no quadragésimo quarto presidente dos Estados Unidos da América. Foi provavelmente o carácter litúrgico do evento e o tom demasiado sermónico e messiânico da mensagem o que provocou algum desconcerto fora dos Estados Unidos. Esta foi certamente a primeira vez que uma tomada de posse do executivo americano concentrou tantas atenções fora dos Estados Unidos, e também pela primeira vez se tornou evidente que o carácter religioso da política no país mais poderoso do planeta atravessa o espectro partidário. É republicano e democrata. Falou-se muito da questão nos últimos oito anos, a propósito da ideologia explicitada nos discursos de George W. Bush. Durante os seus mandatos, a relação dos Estados Unidos com o mundo foi marcada pela crença num certo excepcionalismo, o da cidade sobre a colina em permanente luta contra o mal (e o mal aqui é resto do resto do mundo, está claro). Por seu turno, a virtude e a moral reside no confronto e não na vitória, já que os desafios do mal são recorrentes. O excepcionalismo traduz-se então, politicamente, na legitimidade para utilizar qualquer meio na luta contra o mal; na legitimidade para afastar qualquer crítica e visão alternativa como ameaça intolerável à unidade na luta contra o mal. E se os últimos oito anos foram pródigos no tipo de moralismo assente na crença inabalável no excepcionalismo americano, nascido e criado no convés do Mayflower!

O discurso repleto de referências bíblicas, sermónico e apocalíptico, é o instrumento político preferido do homem sobre a colina; do homem que zela pela cidade e que, nesta capacidade, é chefe-sacerdote e se vê investido de poder divino. A conquista do Oeste, a domesticação da energia atómica e a vitória sobre o comunismo (o mal absoluto, como se lhe referiu Ronald Reagan) não poderiam deixar de reforçar a crença no excepcionalismo americano, de tal forma que um filho de imigrante vindo do Quénia acaba de receber o ceptro de chefe-sacerdote para zelar sobre a cidade. O messianismo nunca abandonou a política americana porque é nela um elemento mobilizador fundamental, além de marca de marca de identidade. A referência ao fundador George Washington desempenhou essa função no discurso inaugural, quando Obama relembrou aos seus concidadãos e ao mundo as palavras proclamadas pelo pai da nação num momento da maior incerteza: “Que o mundo que há-de vir saiba que… num inverno rigoroso, quando nada excepto a esperança e a virtude podiam sobreviver… a cidade o país, alarmados com um perigo comum, vieram para o enfrentar.” George Washington referia-se à tenacidade no momento de luta pela independência, e desde então, e à sua maneira, o excepcionalismo americano conta com a sua revolução permanente. Há quem prefira chamar-lhe a reinvenção do mito (ou sonho) americano, mas no fundo é a revolução em movimento do que se trata.

Como cerimónia, confesso que gostei mais da que teve lugar no Lincoln Memorial e acolheu o concerto inaugural, ainda antes da tomada de posse oficial. Foi mais simples e directo o discurso de Barack Obama, sem tom sermónico, sem excepcionalismos, e o apelo foi para o aperfeiçoamento da união entre os cidadãos, para a superação das clivagens que teimam em subsistir na sociedade norte-americana. Pouco depois, os irlandeses U2 cantaram “Pride (In the Name of Love)” seguida de “City of Blinding Lights”, enquanto Paul David Hewson (mais conhecido como Bono Vox) deixava a sua mensagem para o novo presidente: “Let freedom ring…”

Por: Marcos Farias Ferreira

Sobre o autor

Leave a Reply