A erupção nas escolas de fenómenos de indisciplina e resistência ao saber tem hoje uma força que julgaríamos inimaginável há meia dúzia de anos. Transformadas em depósitos concentracionários de jovens ou em hospitais de cura suposta de todos os males sociais, as escolas veem-se atrapalhadas com a escolaridade obrigatória de jovens já muito na margem da sociabilidade. Não conseguem também adaptar-se curricularmente a estes novos públicos e dão-lhes quase do mesmo que dão aos outros. E isso… dá bronca. Bronca significa aqui recusa de aprender, ambientes de aula de cortar à faca, desespero de professores sem esperança de fazer aprender o que quer que seja, reações de vandalismo, penas duras finalmente mas sem eficácia e sem servirem de sanção verdadeira. A seguir reincidências, perda de capacidade de manobra dos professores, novas penas aplicadas mas não levadas a sério por estes jovens para quem o estudo e o conhecimento não aparecem como significativos.
Do que se fala hoje é de “cursos profissionais”, “vocacionais”, “PIEF”, “CEF”, tudo formações aligeiradas e com facetas práticas e, mesmo assim, ineficazes. As escolas perderam nas últimas décadas a “inteligência técnica”, do saber-fazer, das manualidades e das “artes” que desembocam no trabalho e nas profissões. Perderam mesmo os professores de oficinas, que não se reciclaram ou que foram marginalizados por currículos cada vez mais etéreos. E há aqui alunos, nomeadamente os do insucesso repetido, que só com o ensino técnico e profissionalizante conseguirão o mínimo de sucesso e de reversão das suas energias em algo de positivo. Ele já existe em currículo mas precisa ainda de mais ajustes à realidade. Por mais que alguns pensem que todos temos direito ao conhecimento e à abstração pura.
E esta atitude do “fazer com”, ou seja da reutilização prática do saber, é algo que precisa de renascer nas escolas, nas diversas disciplinas, mesmo nos currículos do ensino regular. No português, com projetos de escrita, de leitura recreativa e de cruzamento com os media; nas línguas estrangeiras com a valorização da oralidade, da potencialização das redes sociais e da comunicação com gente e instituições de todo o mundo; nas ciências com a aplicação e participação em projetos e concursos exteriores à escola e com a ligação às estruturas (empresas e associações) que são a concretização do que se aprende; nas artes com o cruzamento com o teatro, a música, o cinema, a televisão, a internet.
Apesar dos problemas de hoje, a entidade escola não era anteriormente tão pacífica como alguns críticos da escola de hoje apontam. A literatura (abundante) de romance e conto à volta da realidade escolar ou que lateralmente a toca aponta-nos a cada passo os choques, as manhas, as recusas, as incompreensões totais. A imagem do professor é sempre a mais focada, entre a figura do professor quadrado e tirano, sem alma de mestre e conversão pura da ignorância, e a do professor que ensaia a tolerância e a proximidade para agradar e atrair. Da parte do aluno, a preponderância na literatura vai para o menino que cresce e não cabe nas paredes da escola ou para o rebelde que recusa aprender em nome do medo da instituição ou do significado nulo das aprendizagens. Pelo meio a literatura mostra os fenómenos da integração entre colegas, os internatos como lugar de concentração de pobreza económica e social, os choques com os pais, sempre exigentes e a querer sempre mais dos filhos, mesmo quando eles não o podem dar.
A literatura sobre a escola tem o condão de nos aproximar duma época que recordamos habitualmente com nostalgia (mesmo se foi dura), época perdida e longínqua e que por isso nos agrada evocar. As personagens destes romances aproximam-nos assim de personagens nos quais nos refletimos ou porque somos “aquelas” personagens ou porque (não) gostaríamos de ter sido assim ou ainda porque reconhecemos os nossos amigos de antigamente. De uma coletânea de textos da Fund. Calouste Gulbenkian, deixem-me aqui apenas sugerir a leitura de José Régio em “A velha casa” com o relato daquilo que chamaríamos hoje “bullying” entre colegas de colégio, ao tempo da história mera integração no grupo; Aquilino Ribeiro em “A Casa Grande de Romarigães”, com um filho de rico a recusar a disciplina do colégio e a afrontar a hierarquia eclesiástica; finalmente “A Noite e o Riso”, de Nuno Bragança, com um internato surrealisticamente a ultrapassar a imaginação.
Que escritor não desejou um dia plasmar numa narrativa a deceção própria relativamente a uma Escola que é sempre a “estrutura possível” e não a “desejável”? Irene Lisboa diz por exemplo como desejaria “surpreender, bem surpreendida, a miséria dos que nela aprendem, dos que nela ensinam, das casas, das leis, dos métodos”. E acrescenta: “Esta mistura da crítica e da sensibilidade, da pesquisa mental e da compaixão, é que tinha de ser mola do meu romance. Que nunca farei!”.
(Coletânea A Escola na Literatura, Fund. Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997)
Por: Joaquim Igreja