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«A cultura, os eventos culturais, é que desenvolvem uma região»

Cara a Cara – Entrevista

P – Quais os temas que aborda no seu livro “Viagens na minha infância”?

R – São os mais variados. São os ligados à infância, portanto, são temas universais, mas abordados com os olhos de uma criança, para quem tudo é novo e maravilha. Através de contos e de episódios que imagino, abordo o problema da castração, da sexualidade, da ausência, do medo, da doença, da morte, etc. Quem não se lembra de histórias de lobos, de lobisomens, que os adultos nos contavam e que nos tolhiam de medo quando éramos crianças? Que queriam dizer aquelas frases que os adultos nos lançavam de longe “já te capo, já te capo!”, senão o ancestral complexo de castração? A figura do pai perpassa todo o livro. Ele é o mestre, na sua alfaiataria, o pedagogo em todas as ocasiões, o amigo, enfim, o pai que me marcou para sempre.

P – O facto de ser lançado em Vale de Espinho tem um significado especial?

R – De facto nunca imaginei apresentá-lo em Vale de Espinho. Isso deve-se ao meu editor, Dr. Joaquim Pinto da Silva, que me apoiou desde a primeira hora. Algum tempo depois de lhe ter entregue o manuscrito disse-me que estaria disposto a ir a Vale de Espinho apresentá-lo. Ele, que é do Porto, da zona burguesa da Foz, levá-lo a uma terra sem qualquer tradição cultural seria correr direitinho ao fiasco. Foi por isso necessário criar uma dinâmica junto das pessoas não só de Vale de Espinho, como das terras circunvizinhas. Começámos por ir lá, fomos bem recebidos, como é hábito naquelas terras raianas. Contactámos os responsáveis do Centro Cultural dos Fóios e lançámos o desafio de criar uma editora para também ajudar a preencher a actividade cultural que requer um centro cultural numa aldeia, na periferia, na montanha e na raia. A ideia de passar para lá da fronteira e alargar os horizontes à Côa-Águeda deveu-se aos excelentes contactos existentes entre os membros do Centro Cultural dos Fóios e alguns escritores do outro lado da fronteira.

P – Quais as principais diferenças que encontra entre a terra onde viveu na sua infância e a actual?

R – É evidente que é totalmente diferente. O mundo deu um tamanho salto qualitativo em 40 anos que a geração actual nem sequer imagina. Contar-lhes, em linguagem imaginativa, a vida de há 40 ou 50 anos abriga-os a interessar-se pelas tradições, costumes, ritos daquela época. Fomenta o diálogo intergeracional, o olhar para trás, com reflexão, com vontade de aprender o passado e de evitar o pensamento único e uniforme da computação e da televisão.

P – Quais os objectivos da editora Côa-Águeda?

R – É uma editora cujo desígnio é “da cultura para o desenvolvimento”. O objectivo não é ganhar dinheiro, é o desenvolvimento comunitário. Aquela ideia que subsiste em Portugal, segundo a qual é através do turismo que o país se desenvolve, está errada. Quando não sabe falar de mais nada, um autarca fala das potencialidades turística da sua região, em vez de criar potencialidades culturais. Por isso nós nem batemos à porta de autarcas, sabendo de antemão que não iriam acreditar em nós. A editora Côa-Águeda é uma iniciativa da sociedade civil, sem subsídios. A Junta de Freguesia de Vale de Espinho deu-nos 150 euros. Não percebeu que o lançamento de um livro era coisa única na sua terra e a criação de uma editora transfronteiriça um momento histórico. A adesão das pessoas é imensa. Virá gente de Lisboa, do Porto, porque gostam do interior, sentem-se bem por cá, são bem acolhidas. Vão fazer turismo, ficarão um dia, dois ou mais dias. É que a cultura atrai-os, consomem, gastam. A cultura, os eventos culturais, é que desenvolvem uma região.

P – Poderá ser importante para o surgimento de autores que, de outra forma, não teriam a possibilidade de editar livros?

R – É evidente que o nosso objectivo é apelar para autores da região, tanto da parte portuguesa como espanhola, para que se manifestem, que apresentem os seus manuscritos. Em vez de os publicarem em Lisboa ou no Porto que o façam nas suas próprias aldeias, que motivem os seus conterrâneos a comprar, a ler. É por ali que podem começar. É um público natural. É preciso também não esquecer que as pessoas das aldeias deslocaram-se, emigraram. É necessário atingir também este público, que tem raízes no interior e precisa de ler. E vai ler se encontrar nos escritos que lhe são apresentados contos, lendas, histórias que lhes lembrem os seus tempos de infância para eles saborearem e darem aos seus filhos.

É urgente repovoar o interior, como dizia Miguel Torga, já que mais não seja com as nossas lendas, os nossos contos, as nossas tradições e os nossos heróis. Temos de os trazer para as nossas aldeias, mas agora como heróis das artes e das letras. É como que o universo da nossa infância, fecundo, universal, insondável, inesgotável e fascinante.

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