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A cru

Esta semana, o antigo ministro das Finanças Ernâni Lopes defendeu cortes nos salários dos funcionários públicos, esses bodes expiatórios de qualquer crise: “um corte na banda dos 15%, 20%, 30% – 15% sem dúvida, 20% provavelmente”. Note-se o rigor dos números para imaginar os meses de estudo que uma proposta com esta gravidade mereceu. Está na moda dizer coisas brutais, desde que as coisas brutais se apliquem aos outros. E o clima de autoflagelação a que o país se entrega nos intervalos da megalomania aceita estes discursos já sem se indignar. Ainda há um mês, um outro ex-ministro (os ministros são excelentes depois de o serem), Daniel Bessa, defendia a privatização de toda a educação e saúde. É não dar excessiva importância a quem, não tendo de gerir as consequências políticas de cada decisão, alimenta títulos de jornais.

O que me interessa aqui é o que Ernâni Lopes disse a seguir. Explicou como tomaria a decisão: “A cru. Sem explicar nada. Ou melhor, explicando que ou é assim ou não é.” Já nem é a negociação que se dispensa, é mesmo o argumento. E este é o problema de termos dado a tecnocratas o estatuto de políticos. As regras do debate democrático são-lhes completamente estranhas e julgam que o país é uma folha de Excel. Claro que se este reformado do Banco de Portugal desde os 47 anos (confesso que me começo a cansar de tanta gente para quem o sacrifício é receita para os outros) experimentasse viver com o salário médio de um funcionário público nunca tal ideia lhe passaria pela cabeça. Pelo menos com esta leveza. Mais: se Ernâni Lopes não estivesse já retirado nunca diria tamanha barbaridade. Porque é impopular? Não. Porque, dita neste tom leviano, demonstra apenas uma chocante insensibilidade humana.

O que Ernâni Lopes exibe não é coragem ou determinação. É a cultura do nosso atraso. Como muitos portugueses, ele tem um pequeno Salazar na sua cabeça: decide-se como se a opinião dos cidadãos fosse irrelevante. A cru e sem grandes explicações. Que as jornadas parlamentares do PSD tenham sido o palco desta irresponsabilidade apenas demonstra que a coisa ainda está verde para governar. E o pior é que a outra já está madura há muito tempo.

A mentira

Além da interferência do Governo em negócios privados com fins partidários, a comissão de inquérito que agora chegou ao fim ocupou-se de um assunto que, sendo menos importante para o Estado, é central para a política: José Sócrates mentiu ou não ao Parlamento? Os jogos de palavras – se conhecia formal ou informalmente o negócio – são irrelevantes. A única coisa que interessava saber era se o primeiro-ministro sabia o que garantiu desconhecer. E sobre essa matéria só tem dúvidas quem decidiu ignorar os factos. Sabia e mentiu.

Os julgamentos de caracter são perigosos. Mas se o um primeiro-ministro é apanhado com frequência em grandes e pequenas mentiras, em meias-verdades e aldrabices de grande calibre, não é apenas ele que fica em causa. É a instituição que dirige. Ao nos obrigar a perder tempo a discutir o seu caracter José Sócrates tem enviesado o debate político. Num momento de crise, deveríamos estar a debater as várias alternativas para sair dela. Sócrates é hoje pouco mais do que ruído. Qualquer proposta que apresente, mesmo que acertada, perde credibilidade ao sair da sua boca. E é isso que tem permitido a Passos Coelho impor a sua agenda.

Por: Daniel Oliveira

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