As eleições foram há quase dois meses e pouco se ouve sobre medidas em concreto tomadas pelo governo. Há muitas expectativas, correspondentes à necessidade geral em ver rapidamente decisões dramáticas e decisivas e há alguns anúncios, que mais parecem estudos de mercado do que intenções verdadeiramente amadurecidas. No Diário da República vão aparecendo coisas perfeitamente anódinas, sem importância alguma. É como se o governo estivesse ainda em ensaio geral. Ou a tentar perceber o que se passa no país. E o que se passa não é bonito nem parece resolúvel apenas com boas intenções.
A ideia da redução das férias judiciais é um tiro de pólvora seca. De nada adianta aumentar num mês o calendário dos actos judiciais, se não houver tempo depois para proferir as correspondentes decisões. A justiça está em crise não já por falta de meios, ou não só por isso, mas porque o nível de conflitualidade da nossa sociedade saltou para níveis impensáveis. Porquê? Porque o número de vigaristas, de aldrabões, de gatunos, disparou para a estratosfera. Ninguém paga a ninguém e ninguém tem intenções de pagar ou de cumprir o mais simples dos contratos. A justiça está em crise porque a sociedade está em crise. A justiça não está doente: os seus problemas são um mero sintoma de problemas muito mais vastos.
É claro que tem de haver dissuasão, que os Tribunais devem, em cada decisão, emitir sinais muito claros para os muitos prevaricadores, mais de um milhão por ano – o que implica que um em cada dez portugueses comete por ano pelo menos um acto que justifica a acção da justiça. Se o sistema não funciona, pode ser tão só porque está entupido, porque não é razoável esperar que se julguem tantos processos por ano e se assegurem ao mesmo tempo em todos eles as garantias processuais básicas de uma sociedade de direito.
Podia perguntar-se: será de ensinar ética nas escolas? Será que o problema da justiça pode ser resolvido formando cidadãos mais honestos?
Recordo aqui a objecção de Óscar Wilde ao catolicismo: um sistema de perdões que elimina o passado, a desresponsabilização de cada erro face à possibilidade do arrependimento futuro (e respectivo perdão), a permanente espera pela amnistia que tudo limpa e permite recomeçar tudo de novo. Não, não é a Justiça que está doente.
Por: António Ferreira