Arquivo

A Cantina

Em “A Selva”, de Ferreira de Castro, há um sítio onde os trabalhadores vão comprar comida e roupas, nos confins da selva amazónica onde trabalham como seringueiros. Esse sítio pertence ao patrão e as contas são acertadas em regime de conta-corrente: no final do mês são acertadas as contas da cantina, é assim que lhe chamam, com as do salário. Não há outro sítio onde fazer compras, pelo que o patrão pode fixar os preços que quiser, cada vez mais altos. Por mais que o operário trabalhe, por menos que tente gastar na cantina, nunca mais consegue pagar a dívida e está não pára de crescer. Enquanto a não pagar, não pode ir embora.

Steinbeck conta uma história semelhante em “As Vinhas da Ira”. Agora é na Califórnia, nos anos trinta do século passado, com trabalhadores migrantes em fuga da miséria. Nos locais onde arranjam trabalho a apanhar fruta, os trabalhadores fazem também as suas compras num posto de venda propriedade do patrão. Os preços não são justos, como os não são os salários, e constituem instrumento de uma terrível exploração.

Para impedir esses abusos foi publicada, e também entre nós, legislação que, ou proibia a exploração pelo patrão de cantinas com fins lucrativos, ou então a obrigatoriedade dos trabalhadores aí fazerem compras. Mais modernamente (como no artigo 279º do Código do Trabalho de 2009), limitou-se a possibilidade do patrão fazer descontos sobre o salário ao máximo de um sexto deste. Isto pode ser uma solução mais simples mas não impede os abusos na fixação dos preços na cantina e, se impede as situações de quase escravatura dos anos trinta, não deixa de condenar os trabalhadores que caírem na armadilha a problemas e processos judiciais.

Há ainda cantinas, gigantescas, como esta a que, por facilidade de linguagem, chamamos “país”. Uma parte dos habitantes, organizada em associações que se chamam “partidos”, coligada com outras chamadas “bancos”, decidiu viver à custa do resto da população. Esta não tem de fazer compras em cantinas da propriedade do Estado, mas é mantida artificialmente pobre e crescentemente endividada. Depois de ser convencida pela organização dominante, a que por facilidade de linguagem chamaremos “governo”, a comprar casa, mantém-se ameaçada pela possibilidade de subida da taxa de juros ao mesmo tempo que se lhe retirou parte significativa dos rendimentos. Estes destinam-se agora, numa percentagem esmagadora, ao pagamento de impostos e dos encargos com a casa. Nesta, para além disso, concentram-se as poupanças de uma vida de muitos.

A fuga é impossível, a vigilância apertada, as ameaças são constantes. Regressámos à selva.

Por: António Ferreira

Sobre o autor

Leave a Reply