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A Bélgica em dois andamentos

Tresler

1.Chegado a Bruxelas, depois do desembarque na Gare du Midi, ao começar a circular nas ruas adjacentes à Praça da Constituição, deparo-me com uma dúvida existencial: será que desembarquei no norte de África, Fez ou Marrakech? É que são esplanadas e esplanadas de cidadãos árabes, homens evidentemente, a tomar o seu chá de mentol ou a fumarem um longo cachimbo que passam uns aos outros. Depois é um conjunto pujante de estabelecimentos comerciais, nomeadamente cafés, restaurantes e mercearias, com grande variedade de menus e clientes de todas as raças. As mulheres que circulam vêm de lenço e vestidos compridos e arrastam os filhos atrás de si. Nos cafés e restaurantes não se vende álcool.

A situação seria quase normal se a população árabe (5% na Bélgica) não se concentrasse sobretudo em Bruxelas (fala-se em 30%, que podem em 20 ou 30 anos chegar aos 50% segundo as perspetivas mais pessimistas). A questão é que a comunidade muçulmana tem vindo a sobressaltar a quietude de quem considerava que as conquistas da laicidade do estado estavam solidificadas e que são os emigrantes que devem submeter-se às leis do país que acolhe. As coisas não são assim tão simples. Arreigada que está a prática religiosa muçulmana e verificado um sem-número de pré-conceitos nomeadamente no que diz respeito ao papel da mulher na organização social e à relação entre educação e crença religiosa, está feito o caldo de cultura ideal para um confronto.

Assim, diante de algum pasmo inicial, os muçulmanos conseguiram a introdução da educação religiosa muçulmana nas escolas, com a permissão do uso do hijab. E no entanto os crucifixos são proibidos como símbolos religiosos nas escolas. Entretanto alguns líderes árabes e os seus representantes religiosos defendem a possibilidade de não se praticar educação física nas escolas e exigem horários separados para as mulheres nas piscinas. No próximo dia 11 de setembro, a festa muçulmana do Sacrifício (a lembrar o sacrifício de Abraão) costuma ser comemorada com a matança de um carneiro ou borrego. As leis belgas, que proíbem as matanças fora dos matadouros e sem atordoamento dos bichos, têm sido contestadas pelos muçulmanos que defendem a morte sem atordoamento e que no ano passado boicotaram a festa. Este ano a situação está ainda um pouco tensa.

Se não fosse dramático este conflito, dava um belo tema de composição para os multiculturalistas e esquerdistas radicais que querem as portas abertas de par em par a refugiados dos países árabes sem se preocuparem (porque nunca serão poder) como se faz a separação entre Igreja e Estado com esta gente (voltando atrás em “conquistas” que pareciam irreversíveis) e como se gere a presença de largas comunidades junto de outras de culturas diametralmente opostas. O conflito tem pernas para andar.

2.A Bélgica é também a pátria de Pieter Bruegel o Velho, o grande pintor da Flandres que no século XVI desenhou com mestria as personagens mais encantadoras e também mais estranhas dos Países Baixos. Criou um universo de jogos, festas, quermesses e cerimoniais familiares, que fez alternar com personagens de fantasia, virando a sociedade de pernas para o ar. Basta ver A Queda dos Anjos rebeldes, Os provérbios Neerlandeses ou A Torre de Babel. Os Museus Reais das Belas Artes de Bruxelas estão a apresentar uma exposição magnífica à volta do trabalho deste pintor mas também de outros de épocas contíguas. A aliança da arte à tecnologia pelos ecrãs táteis, pelas projeções em largas paredes e pela consulta em “smartphone” através de aplicações informáticas trazem uma outra dimensão à ida ao museu e torna-se inevitável nos tempos que correm. Nada substitui no entanto o ver de perto os quadros de Bruegel na sala 68 do primeiro andar do Museu.

Os mais sensatos dizem no entanto que aquela não é a atual sociedade belga, que vive hoje cercada pela reivindicação do independentismo flamengo. O território atual da Bélgica, que foi ao longo dos séculos objeto da ambição das potências mais fortes, a França, a Espanha e a Áustria (chamou-se mesmo em épocas diferentes Países Baixos Austríacos e Países Baixos Espanhóis), apenas se tornou independente em 1830. Fruto do prestígio do francês como língua administrativa e de cultura, a língua oficial era o francês, sendo as pretensões dos flamengos (que falam neerlandês) esmagadas ou esquecidas ao longo de dois séculos. O domínio da Valónia no plano económico até meados do séc. XX levava também a esta hegemonia. Entretanto a situação virou-se, com a tecnologia a pôr a Flandres na linha da frente. A criação de um estado federal nos anos 90 do século passado não veio resolver os problemas e a situação tem vindo a complicar-se, com os flamengos a não quererem suportar os custos da Valónia, hoje menos próspera.

O que tem segurado a situação não é tanto a monarquia, que parece não deter o prestígio que outras casas reais conquistaram. Tem valido o pesar das complicações que viriam a seguir à separação. Esta Bruxelas que acabo de visitar é um enclave na Flandres, sendo que 85% dos habitantes de Bruxelas falam francês. Nem a Valónia aceitaria ficar sem Bruxelas, nem a Flandres aceitaria um enclave valão pujante de vitalidade económica no seu território. Somem agora tudo isto à implantação muçulmana em Bruxelas e ao estatuto de capital europeia e digam lá se isto não é mesmo um imbróglio.

Por: Joaquim Igreja

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