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A antiga padaria que albergou a luta anti-regime em 1969

Edifício localizado na Rua Marquês de Pombal foi um dos sítios que serviu de ponto de encontro entre os oposicionistas ao Estado Novo na Guarda

Quando em 1969 apareceu na Guarda uma lista oposicionista ao regime candidata à Assembleia Nacional, a primeira e única, a antiga padaria dos sogros de Baeta de Campos, no centro da cidade, rapidamente se transformou na sede de campanha da Comissão Democrática Eleitoral (CDE). O médico, um dos candidatos a deputado, ao lado de João Gomes, vivia por cima. Nesse ano só precisaria de descer as escadas para se encontrar com os seus velhos aliados da luta anti-fascista. «Muita gente passou por ali naquela altura», recorda Baeta de Campos, hoje com 84 anos e a residir no Porto.

Empolgada com a morte política de Salazar e a esperança de que o regime mudaria com as legislativas de 1969, marcadas para 26 de Outubro, em plena “Primavera Marcelista”, a oposição democrática da cidade e do distrito daria a cara nesse ano, embora «se continuasse a ter muitos receios», recorda Baeta de Campos. Socialistas, comunistas, padres progressistas ou simplesmente oposicionistas ao sistema rumavam à sede de campanha, na Rua Marquês de Pombal, num espaço que ainda hoje alberga uma padaria, próximo do actual Café Central. «Apesar da campanha ter decorrido com aparente abertura política, éramos constantemente vigiados pela PIDE», conta o médico. Para além de Baeta de Campos e do histórico socialista João Gomes, integravam a lista César Tavares, advogado do Sabugal, Manuel Tavares Lopes, com ligações aos Trinta, Silvina Augusta d’Almeida, da Mêda, e António Rabaça Pereira, que viria a fazer parte da primeira Comissão Administrativa do concelho da Guarda depois da Revolução. O mandatário foi o padre Canaveira.

Pelas instalações da candidatura passaram ainda outros nomes, como Mário Canotilho, do PCP, de Pinhel, ou o socialista Fernando Lopes, de Trancoso. A campanha empolgou também vários jovens estudantes, que nesse ano despertaram para a luta pela democracia. «Não éramos mais do que uns 15 e tínhamos como tarefas colar cartazes, que fazíamos à mão, tratar da propaganda e dos programas ou preparar os comícios», conta Henrique Shreck, que liderava o grupo, actualmente a morar perto da Zambujeira do Mar. Tinha 17 anos. Foi ele quem equipou a sede de campanha com impressoras artesanais. «Lembro-me que quando abrimos a sede apareceram muitas pessoas, de todas as idades, a quererem saber o que estávamos a fazer e houve quem depois se juntasse a nós», lembra o filho do então único radiologista da cidade, Max Schreck. João Codina, do PCP, foi outro dos jovens que se associou à campanha.

O Cine-Teatro e os cafés Mondego e Monteneve

Henrique Shreck, que garante nunca ter tido ligações partidárias, arquitecto de profissão, refere que houve vários comícios «pelas aldeias» do concelho e «um dos pontos altos foi o de encerramento, no Cine-Teatro». Intervieram todos os candidatos. Só o padre Canaveira não apareceu. Terá sido proibido pelo Bispo da Guarda. «O Cine-Teatro estava completamente cheio», lembra, por sua vez, Abílio Curto, na época director do espaço. Diz que foi nesse dia que ouviu «o primeiro grande discurso» de João Gomes, em que criticou a Igreja e a Guerra Colonial. «Foi empolgando e brilhante», assegura o ex-presidente da Câmara da Guarda, que teve nesse ano o seu primeiro trabalho político. Foi um dos responsáveis pela distribuição das listas e boletins de voto pelas aldeias. Apesar de todo o empenho depositado nesta campanha, a CDE viria a perder as eleições na Guarda, à semelhança do que aconteceu no resto do país, não tendo conseguido eleger um único deputado a nível nacional. «Os resultados foram todos falsificados», queixa-se o socialista. A antiga padaria da família de Baeta de Campos voltaria a fechar as portas e o regime ficaria, a partir daí, mais opressivo.

O Cine-Teatro, esse, continuou a ser ponto de encontro para muitos oposicionistas ao regime. Aqui, «eram exibidos filmes de realizadores de esquerda e vanguardistas, sempre sob o olhar atento da PIDE», refere Abílio Curto. No final das sessões, a polícia política desaparecia e havia quem por ali ficasse a falar da situação do país. Raul Mendonça, actualmente em Lisboa, o advogado Aguinaldo Nave, ou os padres Mota da Romana e Canaveira de Campos – que viriam a deixar a batina anos mais tarde –, bem como Luísa e Adelaide Campos, filhas de Baeta de Campos, são alguns dos nomes recordados por Abílio Curto.

Também os cafés Mondego e Monteneve estavam na rota de quem lutava pela democracia. «O primeiro era sobretudo frequentado pelos alunos do liceu, enquanto o segundo era o preferido dos professores», indica Abílio Curto, recordando as «velhas tertúlias», onde não faltava a PIDE, apesar de nunca ter sido convidada. Abílio Curto frequentava os dois. Já Albino Bárbara, que apareceu no meio oposicionista em 1972, era um dos rostos do Mondego. «Foi no Mondego que tivemos muitas das nossas reuniões e de onde se partia, muitas vezes, para as acções», revela. Relata que uma vez a «malta do Mondego chegou a impedir a PIDE de prender um rapaz». Tudo se passou à porta do café: «Os agentes foram ameaçados e nesse dia não o chegaram a levar», garante. O jovem viria, porém, a ser preso mais tarde, em casa.

O escritório do Dr. João Gomes

O escritório do advogado João Gomes, nome sonante da luta antifascista na Guarda e do PS, ficava na Rua Alves Roçadas e era um dos sítios mais procurados entre os oposicionistas ao regime. «Era procurado por todos os que estavam contra o regime e era ele que coordenava toda a Beira», sublinha Abílio Curto. Do lado do PCP, a casa de Cândido Pimenta era das mais frequentadas, principalmente no final da década de 60. Em 1969, o comunista, que passou pelo Tarrafal, estava «queimado» e era «apenas um mero observador», garante Henrique Schreck. A casa de João Codina viria a ser, mais tarde, também uma referência.

O antigo Salão da Acção Católica

O Salão da Acção Católica funcionou no antigo Paço Episcopal, no espaço para onde está previsto o Museu de Arte Sacra, tendo albergado antes do 25 de Abril o Grupo Egitaniense de Teatro Amadores (GETA) e também o Clube 21, voltado para o cinema. O espaço era frequentado por vários jovens anti-regime. «Chegámos a ser chamados todos à DGS [Direcção-Geral de Segurança] porque houve um “bufo” que foi contar que tínhamos estado a ler o “Avante”», conta Albino Bárbara, que ainda chegou a levar uma bofetada. Foi em 1972. Já Henrique Shreck, um dos dinamizadores do Clube 21, lembra-se bem desses tempos em que decorriam «encontros privados num espaço público». Uma das situações «mais engraçadas» de que se recorda foi a realização de uma reunião sobre os Direitos do Homem, em que apareceram, à última hora, o Bispo, o Governador Civil e o chefe da DGS na Guarda. Acabariam por assistir à sessão, que, ainda assim, decorreu sem sobressaltos.

O edifício que acolheu a sede de campanha da CDE foi demolido e deu lugar a outro

Comentários dos nossos leitores
helena pimenta helenapiment@hotmail.com
Comentário:
Obrigada Henrique Schrec pelo seu testemunho.É bom saber que meu Pai esta vivo nas vossas memorias-Bem haja
 

A antiga padaria que albergou a luta
        anti-regime em 1969

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