Arquivo

A angústia de Montesquieu

Razão e Região

O velho Montesquieu deve estar às voltas no túmulo, com as notícias que lhe vão chegando desta parte ocidental da Ibéria. A sua famosa «teoria da separação dos poderes» está pela hora da morte, em terras lusitanas. Com as últimas eleições, onde o voto devolveu a maioria ao seu carácter relativo, o Parlamento decidiu concentrar nas suas mãos todos os poderes: o legislativo, o executivo e o judicial. Um exemplo: a cada vez mais frequente constituição de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), com os mesmos poderes de investigação das autoridades judiciais, mas sem as mesmas exigências e garantias.

Mas, dir-se-ia, afinal não é lá que estão os representantes, aqueles que podem exibir uma legitimidade directa, sendo portadores daquela soberania que o cidadão singular, com o voto, deposita nas suas mãos? Aparentemente, tudo bem. O Parlamento é isso mesmo: a «Casa da Democracia». Os poderes convergem todos para lá.

Mas há um pequeno problema: acabar com a liberal e montesquiana separação dos poderes não significa mexer no código genético do Estado representativo? Com efeito, a autonomia de funções própria do Estado representativo tem uma explicação de fundo: o equilíbrio dos poderes e a distribuição funcional tripartida dos poderes para que o sistema funcione. Este é, aliás, um dos princípios fundamentais consignado na fabulosa «Declaração dos direitos do homem e do cidadão», de 1789: «toda a sociedade na qual a garantia dos direitos não estiver assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem constituição» (art. 16). Montesquieu, em «De l’esprit des lois» (1748), já fora claro: «não há também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo» (Paris, Gallimard, 1970, 169).

Ora, quando o poder judicial, no legítimo exercício das suas prerrogativas, não decidindo de acordo com o entendimento do poder legislativo, não só motiva a criação de uma CPI para investigar a matéria em causa, como também vê posta na agenda parlamentar a convocação das suas máximas instâncias para nela deporem, então estamos perante o fim da separação dos poderes. Quando, por sua vez, o Executivo, agindo, virtualmente, de uma forma que o Parlamento entende ser politicamente inaceitável, deixa de ser interpelado politicamente para ser investigado por uma CPI dotada de poderes judiciais, então estamos perante uma verdadeira judicialização parlamentar da política. Ainda me lembro de uma célebre CPI que foi criada mesmo depois do assunto em causa estar a ser investigado pela IGAI, pelo Ministério Público, pela PJ, pelo Tribunal de Contas e de ter sido avaliado pelo Conselho Consultivo da PGR. Resultado 1: arquivado. Resultado 2: a sentença moral transitou em julgado no tribunal da opinião pública.

Agora é a vez da «Fundação para as Comunicações Móveis» ser analisada, não pelo Tribunal de Contas, mas por mais uma CPI. E, como se esta não bastasse, é também a vez dessa extraordinária CPI que investiga se o PM mentiu ou não ao Parlamento, depois de a «Comissão de Ética» ter investigado o mesmo assunto, com os resultados que se conhece. Mas a natureza inquiridora da CPI está a evoluir muito: ela transformou-se em «Detector de Mentiras» do Parlamento. E, a continuar assim, não tardará que os actos do Executivo passem a ser submetidos, regularmente, antes da discussão política em Plenário e em Comissão, à «CPI/Detector de Mentiras» dos Secretários de Estado, dos Ministros e do Primeiro-Ministro. Por outro lado, também os actos praticados pelo poder judicial passarão a estar eventualmente sujeitos ao crivo judicial impiedoso dos representantes do povo, através de audições em CPI, que podem ir do procurador mais humilde até ao Procurador-Geral da República ou mesmo até ao Presidente do STJ, se as suas decisões forem consideradas parciais ou suspeitas. Agora, que a suspeita passou a ser uma base fundamental da política. E quando todos nós, portugueses, estamos a ser escutados como nunca o fomos antes. De resto, estas CPIs são bem mais democráticas do que as instâncias judiciais, porque os seus agentes são eleitos e porque são totalmente transparentes, decorrem em directo televisivo e não estão sujeitas a esses rebuscados procedimentos que durante séculos o poder judicial foi introduzindo no sistema, pretensamente em nome do equilíbrio entre as liberdades, direitos e garantias do cidadão e os seus deveres e responsabilidades perante a comunidade. Mais democráticas e transparentes, mas também mais eficazes, competentes e céleres, uma vez que ficam despidas desse garantismo jurídico moroso e ineficaz. As garantias não são tantas, claro, mas são mais profundas porque ancoradas não na legitimidade técnica dos juízes, mas na legitimidade electiva dos nossos representantes, sendo, por outro lado, a rapidez de juízo tão certa como a eficácia da decisão: a publicidade directa das sessões se encarregará de devolver a arma da justiça às mãos do povo. Afinal, ela não é feita em nome do povo? Lentamente, a nossa democracia vai evoluindo para aquela democracia que sempre constituiu o desejo manifesto da nossa esquerda radical: a democracia orgânica, directa ou de assembleia. Só falta mesmo acabar formalmente com o mandato não imperativo. Assim, os poderes derivados também poderão ser revogados a todo o momento. Coisa nem sequer inédita no nosso País.

Por: João de Almeida Santos

Sobre o autor

Leave a Reply