Germinal

«Somos um bocadinho mais completos quando tocamos um lugar que ainda não é nosso, mas já deixou de ser dos que nos rodeiam»

1. Os nossos filtros de representatividade social têm como base a notoriedade postiça. A importância de papelão. O chegar à frente para a fotografia. O embuste. O “olha para mim que sou importante”. A petulância encartada. O sussurro paroquial. O empertigar titubeante do falo. O arroto discreto. No centro, faz-se notar o provinciano, que escancara o seu provincianismo na proporção inversa do esforço em o esconder. E aparece, na sua glória, o licitador da influência, do pedestal, do tráfico com a morte e a glória. O licitador não pára. No seu vastíssimo entendimento, a morfologia e a sintaxe são uma e só coisa. Pois estar em relação é o mesmo que integrar uma categoria. O licitador é o torrencial e compulsivo taxinomista do espaço mediático. O seu conhecimento abrange um pouco de tudo em geral e nada de nada em particular. O problema é que o licitador não consegue suster a sua diarreia informativa. O licitador está condenado a ser o sampler de si próprio. Como não lhe sobeja o talento, a imaginação, a agilidade, o despojamento, é incapaz de rupturas. Sabe que só existe porque é visto. É o nosso polícia conceptual, guarda nocturno do comércio subtil. É o vigilante do império da imagem e da vacuidade, O criado realmente pago pelos pobres para se aproximarem dos ricos, mas que se julga pago pelos ricos para se tornarem invisíveis aos pobres. É o mutante que alimenta a agiotagem essencial que nos tange e nos envergonha. Ali, ao virar da esquina.
2. 26 anos depois, regressei ao mundo académico, com a frequência do mestrado em Ciência Política, na UBI. Ou seja, a uma experiência praticamente pré digital sucede-se um reencontro com um mundo tecnologicamente diferente: com plataformas virtuais dedicadas, fluxos de informação em tempo real. etc. Mas pela parte que me toca, este hiato de tempo não interrompeu o estudo, a leitura, a análise, o pensamento. Bem pelo contrário. Ampliou um edifício em permanente construção. Agora posto à prova diante da realidade. Foi assim que apurei o estilo. A maneira de me relacionar com o mundo. A pensar e a escrever sem gorduras desnecessárias. A Academia transmite conhecimento, mas não o inspira. Isso é trabalho por conta própria.
3. E aquela pergunta proverbial “é impressão minha, ou… (completar à discrição)”? Vale a pena uma análise rápida a esta convenção linguística. Não é bem um pedido de esclarecimento, pois já existe uma “impressão” que apenas busca validação. Também não é uma pergunta, pois não se busca um resultado imprevisto, mas uma reacção pré-determinada. Contudo, está longe de ser uma certeza, mais parecendo uma intuição em busca de cumplicidade, de conforto. Na prática, é aquilo que no jargão forense se chama “dúvida razoável”. Mas uma dúvida de que o próprio, passe a redundância, parece duvidar. Mobilizando os ouvintes para uma afirmação que não se ousa apregoar como a última palavra. É um exemplo flagrante daquilo a que o filósofo José Gil, referindo-se ao clima mental nacional, chamava o «medo do registo».
4. Até finais do século XVIII, os governantes não precisavam de sorrisos de plástico para se fazerem notar. O tal sorriso que, na cara dos políticos, se tornou o rigor mortis da democracia. Os reis e cortesãos, na sua magnimidade ou crueldade, eram amados ou detestados pelo povo. D. Pedro I era um bárbaro que fazia justiça pelas suas mãos. Por isso era idolatrado pelos mais humildes. D. João V viveu em permanente regabofe em tons barrocos. Mas nunca o país teve tamanha solvência. Muitos reis tiveram uma abordagem testicular ao poder. Literalmente. Não queriam agradar a todos. Nem precisavam. Eram a cabeça da nação. Sabiam que só Deus e, talvez a História, os julgaria. Na democracia, os políticos vivem em permanente sobressalto. São escravos do efémero. Falam aos “jovens”, aos “idosos” aos “desempregados”, às “mulheres”, aos “agricultores”, porque podem dizer a cada um desses “grupos” cousas diferentes. Prometendo tudo em troca de atenção e mediatismo. E encobrindo a verdade com desvelo. Como se estivessem a “escutar” o povo. O “povo” fabricado pelas máquinas partidárias e devidamente filtrado para compor belas imagens nos telejornais e redes sociais. É triste e divertido, ao mesmo tempo. Saber desmontar esta encenação é um dever de cidadania.
5. Somos um bocadinho mais completos quando tocamos um lugar que ainda não é nosso, mas já deixou de ser dos que nos rodeiam. É quando reconhecemos, na vastidão dos gestos sem morada, ou da matéria fundamental da terra, os vultos que se evadem da paisagem. E com eles descansamos.

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

Sobre o autor

António Godinho Gil

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