Alguns habitantes de João Antão, uma aldeia perto da Guarda, uniram-se em torno de uma causa solidária e juntos construíram uma casa para uma família desfavorecida que foi desalojada. No entanto, a habitação foi construída em Reserva Ecológica Nacional, num monte perto de Vasconeto, uma anexa da freguesia, pelo que a casa que gerou tão inédita onda de solidariedade vai ser demolida por decisão da autarquia. A família ficará desalojada outra vez, para desconsolo do povo.
Todos os fins-de-semana, ou sempre que tinham tempo livre, os habitantes metiam mãos à obra. Acrescentaram mais um tijolo, colocaram mais uma telha ou carregaram mais um balde de areia. Quase todos participaram na construção da casa, disponibilizando o que tinham e o que podiam. Alguns deram apoio financeiro ou material, outros puseram a mão-de-obra. Tudo para arranjar um tecto à família Matos, que veio do Canhoso (Covilhã) para João Antão há cerca de sete anos e vive com dificuldades económicas. Manuel Matos vai trabalhando temporariamente numa empresa de construção civil, enquanto a esposa trata da lavoura e do rebanho e os cinco filhos menores frequentam a escola. Quando ali chegaram, arrendaram uma quinta em Vasconeto. Mas foram despejados por desavenças com os senhorios. Pouco depois compraram um pedaço de terreno com a ajuda das pessoas da aldeia, a poucos metros de Vasconeto, a um emigrante no Canadá. A sua casa surgiu pouco depois, tendo ao lado um abrigo para os animais. O pior estava para vir. «Há meio ano que a situação se arrasta», diz Estêvão Nunes, presidente da Junta de Freguesia de João Antão, para quem as pessoas da terra, na sua boa fé, quiseram arranjar um abrigo para a família, mas «andaram com o “carro diante dos bois”», lamenta o edil. Compraram o terreno, não o legalizaram e começaram a construir para alojar a família desfavorecida.
Quando se apercebeu da situação, o autarca pediu ajuda à Câmara da Guarda e, depois de um ofício a expor a situação, o executivo deliberou que a família «tinha 30 dias para legalizar a obra», recorda Estevão Nunes. O problema é que a Câmara nem sequer tinha analisado a localização do terreno nessa altura. O prazo foi ultrapassado e o terreno não foi legalizado, pelo que foi pedido mais uma prorrogação de 30 dias. Entretanto, a fiscalização foi ao local e chegou à conclusão que a habitação estava em zona ecológica. «De imediato foram dadas ordens para que a própria família deitasse a casa abaixo, num prazo de 30 dias», adianta o presidente da Junta, mas esse limite expirou a 18 de Junho. «Não sei o que vai acontecer», confessa, apreensivo, Estêvão Nunes, que reconhece que a lei não pode ser contornada. «Se a casa está mesmo em reserva ecológica será certamente demolida», refere, não sem antes desejar que a justiça «demore algum tempo» para que se possa encontrar uma solução, «ou outro sítio para eles ficarem».
Povo está desconsolado
Para António Gonçalves esta situação é «uma crueldade», apesar de ainda não ter perdido a esperança de que a casa não seja demolida. Foi este habitante que fez o negócio do terreno, contribuiu com mais de 700 contos, pagou o telhado e tantas outras coisas que já não se recorda. «Antigamente podia-se arranjar um barroco em qualquer lugar, agora parece que já não é assim», lastima desanimado. Resta saber para onde vai viver aquela família, «já que não têm possibilidades financeiras para arrendar e muito menos para comprar outra casa», realça António Gonçalves, adiantando que «só se forem viver para uma tenda». Também Américo Nunes, habitante da aldeia, ficou «desgostoso» ao saber que a casa que ajudou a construir ia ser demolida. «Ajudei no que podia e, como sou electricista, assegurei a instalação eléctrica», conta o popular, que disponibilizou várias horas de trabalho. Aliás, a montagem «ainda nem está completa», acrescenta. Mas «se a casa for deitada abaixo é uma grande desgraça para aquela família, sobretudo, para as crianças», afirma, indignado. «É uma má notícia que chega quando já tinham encontrado a felicidade num novo tecto», lamenta. Jorge Zuna é outro dos populares que participou na construção da casa. Está igualmente indignado com a situação: «Contribui com muita areia», diz, lembrando que na altura ninguém pensou se a casa estava num terreno ilegal. «Ainda perguntei sobre a autorização da construção, mas ninguém me soube responder», revela o habitante. Apesar da injustiça, não duvida que a lei «é para cumprir, por isso se foi construída num local ilegal tem que ser demolida», conforma-se.
A lei é igual para todos
A casa da discórdia foi construída num terreno abrangido pela Reserva Ecológica Nacional (REN), «sem qualquer licenciamento», explica Esmeraldo Carvalhinho, vice-presidente da Câmara da Guarda. Confirmada a ilegalidade, a obra acabou por ser embargada pela fiscalização. «E não é se quer possível legalizar a irregularidade, já que está em REN», salienta o vice-presidente. O caso segue agora os trâmites legais, sendo que a autarquia «só está a fazer cumprir a legislação», frisa Esmeraldo Carvalhinho, acrescentado que «a lei é igual para todos». E lembra um caso recente e semelhante, «em que um autarca construiu num terreno em Reserva Ecológica e a construção também foi demolida».
Patrícia Correia