“O sábio pode andar por toda a terra; pois a pátria de uma alma boa é o mundo inteiro”
Demócrito de Abdera (sec. V a.C)
Fora-me apresentado, há talvez duas décadas, com a sua mulher Anita, pelos meus queridos amigos casal Espada de Sousa (Maria Artur e Manuel), mas foi uma dessas apresentações que se diluem no tempo até ao quase desvanecimento.
“Não há acasos, há coincidências”, escreveu Emerson.
A área do IPG ligada à Literatura, durante um considerável lapso, decidiu realizar, na Biblioteca Municipal, todas as noites de quinta-feiras, tertúlias iniciadas por uma conferência. (Pelos vistos tem o propósito de continuar. Bravo!).
Infelizmente assisti apenas a algumas – a Vida compele-nos à escrupulosa organização e aproveitamento do tempo – e fiquei deliciado, visto haver casos de excepcional qualidade. Absolutamente do melhor que já se fez na Guarda.
Foi aí que voltei a encontrá-lo, sempre na companhia da sua mulher, essa distinta senhora, cuja categoria automaticamente intuímos pela sua indumentária.
As bibliotecas, como as pinacotecas, são, evidentemente, lugares sagrados. Silenciamo-nos para falar; e falamos para o Silêncio. Sagrado é o Verbo.
A tertúlia é uma comunidade ideal, expressão de seres que se sabem, simultaneamente, humildes, iguais, em que todos os sinais externos estão ausentes para se venerar – porque nada mais há a venerar – a insondável altura do Espírito. Assim, com sintonias e homologias, se engendram imperecíveis empatias.
Como nunca me faltam dúvidas nem curiosidade, vou ouvindo e intervindo.
E assim me deparei com alguém de sólida ou muito vasta cultura, ainda por cima oriundo de uma área muito diferente da minha, vindo de outro país, de outro meio sócio-cultural, trazendo as marcas de uma Espanha que teve que levantar-se dos escombros dessa carnificina que foi 36-39, tal qual as inerentes a quem emana de abastada família.
Estamos permanentemente a maravilhar-nos, porque àquele que verdadeiramente quer saber nada mais restam que as mais finas e valiosas surpresas. Muito do que a Vida tem de mais saboroso não está nos livros de História. Ora, ora…
A idiossincrasia do franquismo, com as suas limitações, concreção de um tempo que a nós parece irreal, os seus cânones, perante os quais – pelo menos – tinha que fingir-se inquestionável aceitação sob pena de severas represálias, essa idiossincrasia era para mim motivo de sorriso, de ahs! e, por vezes, mesmo de gargalhadas, tão fielmente o Eng. Alonso a apresentava.
Sim, sim, demos valentíssimas gargalhadas e eu guardarei referencialmente o seu acolhimento, a sua alacridade, a sua generosidade, a sua frontalidade, …
A Guarda também lhe deve muito, dada a sua paixão pelos cavalos e a sua escola equestre. E ele conhecia-a bem, porque muitos “notáveis” desta terra lhe deixaram valentíssimos calotes, perante os quais… encolhia os ombros. Uma exemplar superioridade!!
É bem verdade que os “virginianos” são um signo de terra e que…”não brinca em serviço”.
Pela sua paixão pelos cavalos, um dia, na coudelaria de Alter conheceu o Dr. J. Hermano Saraiva.
Conheceram-se e, na TV, Hermano Saraiva afirmou um qualquer erro grave, para o qual o nosso Eng. lhe chamou a atenção. Dada a contumácia em aceitar a verdade, de regresso à Guarda, Alonso enviou-lhe a prova do seu erro. Hermano Saraiva nunca lhe respondeu…
Nas quentes tardes de Setembro, a sua sala nas Amoreiras era, ademais, um regalo de placidez.
E como um grande é sempre multímodo, o nosso Eng. era também pintor. E como um grande é sempre solidário, ao identificar a surpreendente categoria de Jerónimo Brigas, Alonso disse-lhe: “Meu caro! Como és incomparavelmente maior que a Guarda, vai para Salamanca e deixa que, aí, o teu talento voe”.
Foi uma sorte para o malogrado escultor e para a Guarda. O artista não apenas descobriu o requinte do granito de Sayago como deixou uma obra espantosa que só é pena ter sido interrompida tão cedo.
A imprensa salamantina prestou-lhe a devida homenagem, nomeadamente através de um artigo de um Prof. Universitário, o qual li cheio de comoção.
Peças suas ornaram também a Exposição da Egicar e, por trás daquele corpo hiperbólico, estava um génio da mesma altura de Constantin Brancusi.
Alonso esteve, evidentemente, também nesta exposição com que a Egicar nos brindou.
E, mais do que a emanação tópica da sua Espanha, da sua Cantábria natal, a obra do Eng. já se alcandora muito mais acima. É um pintor de mérito.
E é acima, com Deus, que desejo que o Amigo repouse eternamente.
À Exma Senhora sua mulher deixo a minha sentida solidariedade, ainda por cima, porque alguém lhe falhou, a ela, precisamente quando, pelos vistos, nenhuma lei o admitia.
Guarda, 10 – IV – 05
Por: J. A. Alves Ambrósio