Frutidor

“Quando os motivos para uma alegria transbordante escasseiam, as punch line orientam-se para uma espécie de autognose pautada pelo látego da ironia.”

1 – A pandemia está a ser uma boa desculpa para os hipocondríacos distinguirem os inimigos, os fracos se esconderem, os fumadores não se sentirem segregados, os crentes na ufologia ficarem respeitáveis, os zombies do costume serem os zombies do costume, as pessoas com vidas de baixa intensidade terem vidas ainda com menor intensidade, os proselitistas terem um auditório, os loucos rirem a sério, os burocratas se sentirem úteis, os políticos regularem a forma como comungamos nas igrejas, ou circulamos na rua, os catastrofistas não terem mãos a medir, os mortos serem esquecidos, e os que mantêm um pingo de lucidez não se arrependerem da sua clarividência…

2 – Gosto muito de polvo. Especialmente à maneira galega. E não quero ter nada a ver com esta oligarquia que reserva para si os lugares do domínio. Na antiguidade acedia-se ao poder e à glória graças à bravura no combate, à sabedoria, à perseverança, as virtudes clássicas. No período medieval, a fé e a força tomaram a dianteira. Mais tarde, o intriguismo e a frivolidade dominaram a cena. E por aí adiante. No séc. XXI, em plena III República lusa, o acesso ao poder é alheio a qualquer ideia de mérito, ou de relevância cívica, ou de simples audácia. Tudo se combina nas salas alcatifadas das grandes sociedades de advogados, nos corredores dos directórios partidários, nas antecâmaras da Maçonaria, à margem do país e do escrutínio público. Tudo o resto, incluindo eleições, são meras distrações…

3 – No Flirt, site de encontros, a idade máxima permitida pela aplicação para efectuar o registo é 78 anos. É curto. Penso nas mulheres que querem conhecer um homem que tenha perdido por completo as ilusões do amor. Um homem com 100 anos, pelo menos. Que seja mais do que o rapazinho que se apaixonou pela professora de piano. E para isso, quase sempre se é demasiado novo. Diz cynicus adorabilis, este vosso criado.

4 – Já todos ouvimos há, pelo menos, 30 anos para cá, a expressão “INTERIOR ENVELHECIDO”. Isto dá que pensar. Segundo dados da Pordata, a esperança de vida à nascença, em 1990, era de 74 anos. Em 2018 fixou-se nos 81 anos. Grosso modo, nestes 30 anos temos uma expectativa média de 77,5 anos. Ora, se a população já estava envelhecida em 1990, significa que, na pirâmide demográfica invertida, já tínhamos uma faixa populacional não inferior a 30% com idade igual ou superior a 65 anos. E em 2020? Basta relacionar os números. Fora dos centros urbanos, algumas sedes de concelho e localidades onde houve alguma renovação geracional, o panorama agravou-se de forma exponencial. Muitas aldeias ficaram despovoadas, ou em vias disso. E daqui a 10 anos muitas mais vão ficar. Não creio que sejam comissões e Secretarias de Estado que irão inverter a tendência. A esperança reside naqueles que, por si próprios, resolverem arriscar, retomar um legado secular, ainda que reinventando-o.

5 – Há dias estava a fazer uma pesquisa sobre empresas que comercializam fossas sépticas. Quando digitei os caracteres a primeira vez, o corrector insistiu em assumir “céptica”. Lembrei-me então do meu projecto literário abandonado: “FOSSA CÉPTICA”. Algo que a app do teclado memorizou. De caminho, descobri a verdadeira razão de o meu último livro se chamar “Distracção Eréctil”. O trocadilho com “disfunção” é óbvio. Mas a razão de fundo é usar o máximo de consoantes mudas em duas palavras, só para chatear os defensores do aborto ortográfico.

6 – Chamaram-me a atenção para o uso excessivo do humor autodepreciativo no que escrevo. É verdade. Quando os motivos para uma alegria transbordante escasseiam, as punch line orientam-se para uma espécie de autognose pautada pelo látego da ironia. Como se a única saída para a erosão fosse a crueldade benigna. A falsa trombeta do apocalipse. O amparo lúdico no aconchego do borralho. A reposição das medidas. Como se o viático para a melancolia fosse uma espécie de desprendimento efusivo.

Sobre o autor

António Godinho Gil

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