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«Se não fosse o 25 de Abril hoje teríamos um grande hospital»

Silvano Marques, médico cirurgião, comemora 90 anos no dia 26 de Abril

Aos sete e oito anos começou a dissecar todos os bichinhos que lhe apareciam à frente, pegava num canivete e cortava-os para ver como eram por dentro. Ambicionou desde pequeno ser médico, apesar dos pais não aceitarem essa decisão de ânimo leve. Mas a sua determinação foi mais forte e sagrou-se num dos primeiros cirurgiões do país. É com extraordinária e surpreendente lucidez que hoje fala das suas memórias. Durante 25 anos dirigiu os destinos do Hospital da Guarda, primeiro da Misericórdia e depois já com a integração do Sanatório Sousa Martins. Silvano Marques comemora 90 anos no próximo dia 26 de Abril. Um médico que marcou toda uma época no distrito da Guarda.

Na parede do velho consultório, com quase 30 anos, estão colocadas as fotografias dos filhos, da mulher que já partiu, dos netos e alguns desenhos infantis. Ao seu lado, junto à secretária, uma velha máquina de escrever. «Ainda sou do tempo em que não havia automóveis», recorda o cirurgião, enquanto faz uma retrospectiva da sua vida. Em 1937 foi fazer o exame à Faculdade de Medicina de Coimbra, à socapa dos pais, «depois até levei uma grande descompostura», recorda. O pai era empresário agrícola e tinha «muita terra para eu lavrar», diz em tom de brincadeira. «Mas eu sempre quis ser médico e lutei por isso». Também foi à revelia dos pais que se casou, quando terminou o curso. Em Novembro de 1954 foi convidado pelo Governador Civil da época, Augusto César de Carvalho, para dirigir o Hospital da Guarda que se encontrava então fechado. Foi-lhe entregue pela Santa Casa da Misericórdia a direcção do hospital e a direcção clínica da cirurgia. «Não havia contratos, era uma espécie de médicos a favor. Não recebia ordenado, mas tinha pulso livre», conta Silvano Marques.

Nesse tempo, o Hospital da Guarda passou a servir de apoio cirúrgico entre o Tejo e o Douro. Por lá passaram pessoas ilustres, «como o Sr. Bertrand ou um Ministro da Guerra francês», recorda-se com vaidade. Quando veio para a Guarda deixou a direcção do Hospital de Elvas, sua terra natal, e trouxe a família. Já na altura havia um projecto para um novo hospital, empreendimento que não se concretizou até hoje. A unidade devia ter sido construída onde está hoje o mercado municipal e a central de camionagem, um terreno de giestas que pertencia ao Estado. «O Governo parecia muito interessado naquela obra», refere o médico, mas o tempo passou e a obra não se concretizou. Em 1971 foi eleito presidente da Comissão Nacional para a Integração na Carreira Médica Hospitalar dos Médicos dos Hospitais Distritais das Misericórdias. Na altura conseguiu integrar 1.250 médicos na função pública, esta foi outra das suas bandeiras. Entretanto foi enchendo o “hospital velho” de novas especialidades e mais médicos. Assim surgiram a radiologia, obstetrícia, pediatria, ginecologia, cardiologia, laboratório de análises e uma farmácia hospitalar.

O hospital novo que nunca chegou

Já director, Silvano Marques foi buscar os melhores especialistas do país, entre eles Barreto Xavier. Mas como a unidade de saúde começava a “rebentar pelas costuras”, decidiu pedir ajuda a um velho amigo, Azeredo Perdigão, então presidente da Fundação Gulbenkian, que prontamente se deslocou à Guarda em 1972. No espaço de um mês ofereceu um pavilhão para os serviços considerados mais urgentes. «Ali ficaram as consultas externas, urgências, quartos particulares e o raio x», lembra. Comprometeu-se ainda a oferecer a construção do novo hospital, o qual previa cerca de 450 camas, seis salas de operações, todas as valências a que tinha direito um grande hospital da época. Incluía ainda uma Escola de Enfermagem com capacidade para 90 alunos. Já com o ante-projecto feito, aparece o 25 de Abril de 1974. «Aí, caiu mais uma vez a formação do Hospital da Guarda, pois houve que retrair tudo o que estava em actividade», lamenta Silvano Marques. «Se não fosse o 25 de Abril hoje teríamos um grande hospital», não duvida. Quando completou 70 anos, em 1985, saiu da função pública por força da lei. Nessa altura dedicou-se à medicina privada num consultório da Rua Mouzinho de Albuquerque, na Guarda. Hoje visita o Hospital Sousa Martins «três a quatro vezes por semana», para rever amigos e «matar saudades», confessa.

A curva e as engenharias do Dr. Silvano

Na altura fazia quase tudo, da cirurgia geral à ortopedia, passando pela ginecologia e neurocirurgia. Antigamente havia muitos acidentes na EN16, principalmente com imigrantes: «Às vezes até havia dez acidentes por dia», garante. E havia uma curva muito apertada à saída de Pínzio, «que as boas línguas da terra baptizaram como sendo a curva do Dr. Silvano, porque os condutores estampavam-se ali quase todos. Depois vinham para o hospital», conta o médico. Para além de ser conhecido por falar muito alto, também ficou famoso pelas suas “engenharias”. «Eu criei a minha própria cirurgia, sempre operei à minha vontade», assegura Silvano Marques, para quem não se podia usar técnicas «muito rígidas» quando se operavam muitos doentes. Por isso, às vezes, quando chegavam muito mal, «eu fazia o que podia», acrescenta. Recorda-se de cinco situações distintas, mas que têm em comum o facto de envolverem crianças, entre os 3 e 4 anos, que foram esmagadas, uma por uma roda de um carro de bois, por exemplo. «Dentro da minha engenharia, liguei o pâncreas ao fígado, o fígado ao intestino, cozi a parte do estômago e fiz uma coisa funcional», revela minuciosamente. Ainda hoje os cinco pacientes estão vivos para contar a história. «O problema é quando fazem uma radiografia e os meus colegas não entendem aquelas ligações. Mas já todos sabem que aquilo é uma engenharia do Dr. Silvano!», ironiza com orgulho.

Patrícia Correia

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