Sempre ouvi elogiar Álvaro Cunhal pela sua coerência. Com o passar dos anos, manteve sempre os seus ideais, a linha do seu pensamento, apesar de… ser completamente contraditado pelo mundo. Manteve-se fiel ao seu espírito, apesar da “queda” do Muro de Berlim, da decadência soviética, da implosão dos sistema económico marxista e de tudo quanto contrariou as suas teses. Cunhal, como uma fria estátua de pedra, permaneceu imóvel, contra todas as tempestades, enquanto todo o mundo rodava ao contrário dos seus olhos. É isto “coerência”?
Penso que não. Para mim, “coerência” não é algo mais que uma teimosia ofuscada, mais que um bater do pé obstinado, mais que uma birra ideológica.
O homem tem direito a mudar com o mundo. Tem direito a incorporar no seu entendimento novas experiências e a construir novas matrizes de pensamento. É quase obrigatório mudar o pensamento, quando confrontado com novos paradigmas, novos modelos sociais e políticos.
Eu não penso como pensava há 20 anos. Vivo uma realidade social diferente da herdada dos meus pais, entrei para a universidade, entrei no mundo do trabalho, conheci novas pessoas, ganhei novas figuras de referência, trabalhei com pessoas marcantes, ganhei a experiência do meu próprio trajecto de vida… Hoje sou um homem diferente e penso de maneira diferente. Isto significa falta de coerência? Penso que não.
…e de Freitas do Amaral!
Freitas do Amaral foi a (meia) surpresa do Governo de José Sócrates. Fundador do CDS, candidato presidencial da “direita” portuguesa, aceitava agora uma honrosa figura de actor secundário, num elenco socialista. É claro que o seu artigo na Visão, bradando o seu ensejo de uma maioria do PS, já deixava antever um namoro furtivo. Mas por vezes, como S. Tomé….precisamos de ver para crer!
Bom, mas no seguimento do que disse anteriormente, não terá também Freitas do Amaral o seu direito de mudar? Claro que sim!
Sócrates foi da JSD, Soares foi comunista, Durão Barroso maoista… todos têm direito a mudar. Só que estas figuras mudaram em relação a posições de juventude e a contextos políticos que se alteraram radicalmente. Acontece que Freitas mudou quando já deveria ter um pensamento consolidado, quando já tinha um percurso de vida, um histórico volumoso e marcante para a própria democracia portuguesa. Não é uma figura singular.
Ficamos com a sensação que a sua mudança não é ideológica mas estratégica. O seu discurso mudou nos últimos tempos em função do posicionamento táctico de uma hipotética recandidatura à Presidência da República. Era uma tentativa de cativar eleitorado ao centro-esquerda do espectro político. Mas perante o avolumar da candidatura de António Guterres, viu-se na contingência de radicalizar mais e mais o seu discurso, para ocupar o espaço à esquerda. Perante a Guerra do Iraque, tocou o fundamentalismo, ao lado de Ana Gomes, Francisco Louça e Carlos Carvalhas. Mesmo que negue a evidência, comparou Bush a Hitler. E quando viu goradas todas possibilidades de ser candidato de esquerda e entendeu que não conseguiria bater uma emergente candidatura de Cavaco Silva, aceitou o prémio de consolação – Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros.
O ataque do PP pode ter sido uma “vendetta”, uma dor de cotovelo, mas a sua resposta de “tio” incomodado, cheio de tiques, que diz que só “atacam os fortes” e que todos são uns “invejosos”, mais alimenta a ideia de um homem snob, que não mudou de ideias, mudou sim, friamente de objectivos. Há quem deixe o poder por ter ideias. E há quem deixe as suas ideias para ter poder. E manifestarei a mesma surpresa, se daqui a dez anos, Francisco Louça for ministro do PSD. Aqui, decididamente…. não há coerência.