É voz comum a ideia de ser a página em branco o maior pesadelo do escritor. Comigo isso não é verdade. Acordo muito mais sobressaltado quando sonho com gente como Francisco Louçã, Tony Carreira, Maria de Belém e dois Pinóquios gémeos. Se o inconsciente me revelar durante o sono imagens de tiras de cabedal com fivelas e um leito para sacrifícios asteca, a noite é dada por perdida e a calma só conseguida após percorrer serenamente a colecção de revistas e as actualizações diárias de diversos sítios da rede. Repare o leitor que utilizo as palavras sítio em vez de site e rede em vez de web. Penso que devemos usar a língua portuguesa sempre que for caso disso, em vez de deixarmos que venha um inglês ou um francês qualquer usar a sua língua por dá-cá-aquela-palha. Podem contar comigo para mais este desígnio nacional. Aliás, nesta coluna afirmei já várias vezes a disposição de sacrifício para com a nação portuguesa, enumerando diversos objectivos e várias soluções. Não me admiraria se um dia gente bem intencionada recolhesse as ideias expostas no Observatório e fizesse um programa político para concorrer à Associação Nacional dos Caçadores de Gambozinos. Mas perde-se o texto em divagações considerandísticas elucubrantinas (estas duas últimas palavras não existem, mas se Mia Couto vende livros a inventar palavras, considere o leitor esta tentativa um acto empreendedor da iniciativa privada no sector lexical).
Retomo então a ideia original do texto: os pesadelos dos escritores. Seria um bom assunto se eu conhecesse algum escritor a quem pudesse perguntar quais são. Todas as semanas, quando me sento para escrever os textos que aparecem nesta página do jornal, e para evitar o drama já referido da página em branco, encho o ecrã com textos variados de Saramago, letras avulsas de Ágata e sms enviadas por Pimpinha – perdão, Catarina – Jardim, que se vão apagando conforme vou escrevendo. Ou seja, funcionam como a cenoura em frente do burro. Quanto mais e mais depressa escrevo, menos tenho de estar a gramar com a qualidade excelsa da escrita referida. É um método de motivação igual a qualquer outro, desde as teorias de Herzberg às ameaças paternas “se não fazes isso como deve ser, racho-te a cabeça em quatro e não comes arroz doce”. (Na verdade, isto não funcionava verdadeiramente porque depois da primeira vez a cabeça rachava sempre pelo picotado e o arroz doce era servido com canela.)
Como é possível verificar, a dificuldade não está em encher a página de letras, que se torna ainda menor caso muitas dessas letras forem dispostas numa ordem totalmente aleatória, o que se tem verificado desde os primeiros artigos por mim publicados neste jornal. Que as letras e as palavras acabem por formar um conjunto com sentido é culpa que não me pode ser atribuída, mas sim fruto do acaso. Essa sim, é a verdadeira dificuldade. Não é encher o espaço, mas preencher a sua forma com significado. Mas deixemos de lado as prado-coelhices, se não acabo a apagar o meu próprio texto.
O problema do autor de textos para a penúltima página é que toda a gente já leu as notícias e os colunistas com opinião a sério, incluindo a lista das farmácias abertas e a previsões para os signos do Zodíaco, e chega aqui cansado e sem paciência. O melhor que se pode dar a um leitor neste estado é um texto que diga: “Não tenho aqui nada para ti. Podes fechar o jornal e ir à tua vida.” O Observatório de Ornitorrincos preocupa-se com a saúde pública e não deseja cidadãos esgotados. Esta semana, vamos deixar o espaço da coluna em branco. Caro leitor, pode ir à sua vida, aqui não há nada para ler.
EU VI UM ORNITORRINCO
Wanda Stuart
Pertence à subespécie artista-cantadeira, lava o cabelo exclusivamente com sabão azul e anunciou na imprensa a sua gravidez. De um estrumpfe.
Por: Nuno Amaral Jerónimo