É sobremodo sabido que as novas tecnologias de comunicação geraram um paradigma relacional inteiramente novo, cristalizado a um ritmo assustadoramente avassalador e que se alojou nas sociedades hodiernas sem possibilidade de retrocesso. Mais: tal avanço instalou-se tão célere como silenciosamente sem que lhe adjazesse sequer um sustentáculo de pensamento. Já era tarde quando o fenómeno começou a ser questionado e se levantaram as mais acerbas críticas a uma mentalidade que, subscrevendo o progresso tecnológico a todo o transe, havia permitido um generalizado distanciamento social e consequente degradação das relações inter-pessoais; a verdade é que contagiou todas as latitudes, com maior ou menor incidência. Esta generalizada desumanização das sociedades ditou também a ligeireza e a superficialidade das vivências: o ente virtual sobrepunha-se ao real, a fugacidade altissonante do instante postergava a intensidade vivida sob momentos meditados. A emoção sobrepunha-se ao sentimento. A práxis do entendimento funcional – que já aqui abordámos a outro título – asfixiava o culto do conhecimento. A cultura subalternizou-se a uma mera de colectânea de dados. O computador e os aparelhos equiparáveis – desde logo um simples telefone dito “de última geração” – de ferramentas auxiliares, ganharam o estatuto de verdadeiras extensões da atividade cognitiva humana que condicionam o pensamento, menorizam (ou anulam) a criação e a fragilizam a memorização. Não se tratam já de ferramentas ao serviço do homem, mas verdadeiras entidades de dimensão sociológica que formam com o mesmo um conjunto indissociável. Depois do pioneirismo do filósofo americano Ted Nelson – que ninguém leu, obviamente – nos ter tentado despertar para os impactos da máquina computacional na sociedade, tem sido, mais recentemente ao pensador Pierre Lévy que devemos as mais prementes e judiciosas reflexões sobre o advento do universo informático e o papel que os programas computacionais desempenham na criação de uma tecnologia intelectual artificiosa ou manipulada, quer dizer, a reorganização mental a partir da máquina de toda uma visão do mundo e dos seus “usuários”, modificam seus reflexos cerebrais, e propiciam novas maneiras de pensar e de conviver.
As gerações filiadas nesse novo arquétipo antropológico preferem a amizade virtual à real, emocionam-se mais com uma operação mecanizada; comove-os mais um vídeo de mendicidade do que o mendigo que vive no vão da escada do seu próprio prédio; a amizade das redes sociais é sobrevalorizada em relação à vivencial; um abraço transmitido mediante a sua figuração iconográfica tem muito mais significado do que aquele que é dado efectivamente. Neste corolário, uma video-chamada feita a partir do smartphone é mais valorizado do que uma conversa à mesa do café e as reuniões de grupo feitas a partir de plataformas multimédia são preferenciais àquelas que pressupõe o contacto grupal.
Na verdade, a consciência contra-corrente, o agregado dos espíritos anti-sistema que recusavam o “e-book” e os relacionamentos “online” – sem negarem todavia as virtualidades de uma utilização temperada e consciente das TIC’s – estavam a ganhar terreno. Eramos – assumo a minha inclusão no seio daqueles – cada vez mais. Eis se não quando a eclosão de um vírus nos remete sem escapatória para a obrigatoriedade do isolamento social, porque a escala planetária é desta vez mais impositiva de comportamentos globais.
E fomos assim condenados a viver, quer quiséssemos quer não, virtualmente. O enfastiamento, o isolamento, a intoxicação informática, a desumanização, ficaram assim desmascarados e postos num plano que permite a reflexão de todos. O sentido desvivido da humanidade está assim demonstrado, e sente-se um clamor – também ele planetário – pelo regresso ao mundo, ao mundo do tablado social e humano. As mentalidades, doravante, jamais serão as mesmas. Pena a lição ter sido tão cara! E mais não digo.
* Escritor
** O autor segue a ortografia anterior ao AO de 1990