Venho aqui, nesta crónica singela, pedir desculpa a todos os marshalls dos EUA que em algum momento serviram a sua nação desarmados. Embora criança, sei hoje que cometi o grave crime de apropriação cultural quando, nos carnavais de 1982 e 1983, saí à rua com uma camisa quadriculada de flanela, um chapéu abaulado nas laterais, e uma estrela de seis pontas presa por um alfinete onde estava escrito “USA Marshall”. Não trazia nenhuma pistola, porque a minha mãe proibia expressamente o uso de armas de brincar – para esclarecer, a frase anterior não significa que ela concordasse com o uso de armas verdadeiras. A minha mãe era tão pacifista que não gostava de peixe-espada, de tiros de partida, ou dos Homens da Luta.
Percebo hoje o sofrimento que posso ter causado aos agentes federais norte-americanos desarmados, ao fazer-me passar erroneamente por um, apropriando-me culturalmente de uma profissão, um vestuário, uma nacionalidade, e até uma idade que não me pertenciam.
Nesta era da radicalidade identitária, os disfarces não devem usar características de outros grupos. Ninguém se deve fazer passar por aquilo que não é. Uma mulher não se deve vestir de homem, um polícia não deve usar bata de enfermeiro, um português não se deve disfarçar de chinês – por coincidência, qualquer destes três grupos é mais vulnerável ao coronavírus.
Como nunca gostei de nenhuma destas celebrações, espero alegremente pela abolição do Carnaval e do Halloweem pelos espíritos iluminados do politicamente correctíssimo.
Até esse dia, o melhor a fazer é cada um disfarçar-se apenas de si próprio. Que possa haver pessoas que não sabem exactamente a que grupo identitário pertencem só dá mais força aos argumentos a favor da eutanásia.
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia