A chave de um verdadeiro tesouro está com o sacristão ou os donos do Café Brito, em Alvoco da Serra, no concelho de Seia. São eles que abrem a porta do primeiro Museu de Arte Sacra da Diocese da Guarda, inaugurado a 8 de Dezembro, onde se podem descobrir obras muito raras do período renascentista da Escola de Coimbra e de João de Ruão, entre muitas outras. Um património valiosíssimo reunido por Fernando Moura, docente universitário aposentado há 13 anos, natural de Alvoco, que continua deslumbrado com aquilo que considera um «milagre» e que os interessados podem ver na capela de Santo António enquanto decorrerem as obras da capela de São Pedro, futura sede do museu.
E não é para menos, como prova uma escultura de Nossa Senhora do Rosário (século XV), padroeira da freguesia, atribuída à oficina de João Afonso, um dos grandes mestres da Escola de Coimbra. E outras de S. Pedro, Santa Engrácia e de Santo António em pedra de Ançã. Há ainda o verdadeiro “ex-libris” do museu, um magistral sacrário esculpido por João de Ruão, do século XVI, que mede cerca de 1,70 metros. A estrutura, que integrava o retábulo da primitiva igreja de Alvoco, estava desmembrada encontrando-se os seus componentes dispersos por vários lugares da aldeia. «O sacrário chegou a estar perdido. Uma parte foi abandonada no patamar de uma escada do centro paroquial, a base estava na capela de S. Pedro e o florão, que ninguém sabia onde andava, encontrei-o no meio de outras alfaias. Tudo junto, descobriu-se que tinha “crescido” 20 centímetros», conta Fernando Moura. Uma outra escultura, do Espírito Santo (século XVI), também da Escola de Coimbra, perfaz um total de seis esculturas da Renascença, às quais se juntam três crucifixos em estanho, um outro em marfim, de origem francesa (século XVIII) e uma peça «muito rara». Trata-se de um dossel portátil que está encerrado numa caixa em nogueira com o formato de livro. «Mede cerca de 40 centímetros e é um objecto extremamente bonito», acrescenta o mentor, apontando ainda os paramentos, alguns missais e duas colunas da primitiva capela de S. Pedro, que tinha na sua posse e legou ao museu.
Alvoco está «cioso» deste património
Todos estes argumentos terão impressionado Dalila Rodrigues, actual directora do Museu de Arte Antiga, em Lisboa, que esteve em Alvoco há um ano para verificar a qualidade das obras. A ex-responsável pelo Museu Grão Vasco de Viseu veio a pedido do presidente do Instituto Português de Museus, a quem Fernando Moura enviou um dossier sobre o projecto, e validou o que viu. «Ela ficou entusiasmadíssima e o seu testemunho foi extremamente valioso para o projecto», adianta o responsável, explicando a presença de património tão valioso numa aldeia recôndita da Serra da Estrela com o facto de Alvoco ter sido uma comenda dos Condes de Redondo, um dos quais terá sido um grande protector das artes. «Mas não temos nenhum documento escrito que o prove, provavelmente, essa família tê-lo-ia e pode estar actualmente no Brasil para onde foi levado pelo Rei D. João, juntamente com o resto da biblioteca da família, comprada a seguir ao terramoto de 1755», esclarece. Uma lacuna que não impediu Fernando Moura de concretizar o projecto do museu. Demorou foi tempo. A ideia data de 1969, mas só agora foi concretizada pelo facto de ter sido nomeado no ano seguinte professor na Universidade Católica de Lovaina (Bélgica), onde, entre aulas de Português, Economia e Sociologia, conheceu «outros meios artísticos e visões muito diferentes» sobre a arte sacra.
Mas também porque o pároco de então rejeitou «evidentemente» a ideia. Ainda hoje não sabe o porquê. Contudo, esta nega motivou-o a escrever um livro sobre as quatro esculturas do Renascimento de Alvoco da Serra para que os seus conterrâneos ficassem a conhecer a importância daquele património. «Se pela minha aldeia tivesse passado um negociante de arte com uma certa formação, ele tinha comprado aquelas esculturas todas por dois tostões», sobressalta-se, considerando que a função do museu também é por isso a de deixar para a posteridade todo aquele património. «É um legado que recebemos gratuitamente, pelo que a menor das nossas obrigações é transmiti-lo às novas gerações», refere Fernando Moura, que confessa que esta iniciativa tem provocado «alguns ciúmes» numa diocese à qual diz faltar o real conhecimento do seu património em arte sacra. «É tempo de haver alguém formado em História de Arte ou de incitar um sacerdote com mais inclinação a cursar essa área numa universidade», sugere. Enquanto isso não acontece, desconfia que a população de Alvoco permita algum dia a cedência destas peças para outras exposições, mesmo que temporárias: «Agora que sabe o que tem, o povo está muito cioso deste património», adianta, revelando que na base deste projecto há «uma fé cristã profunda e prática, pois o cristianismo não pode ser só romântico, as acções é que contam».
Luis Martins