Empoleirada numa velha cadeira de vime, encostava o nariz aos vidros da janela para observar os homens do lixo, munidos de pás e vassouras, a recolher as caixas de sapatos que cobriam o chão do Largo de S. Pedro de branco. Neste exercício identifico uma das minhas partes preferidas, das que hoje são bocadinhos, muito remotos, de recordações de infância. “Desce daí que podes cair”, repetia a minha avó até os homens acabarem de meter a última tampa de cartão naquele carrinho com ar de quem estava capaz de se ir dali assar umas castanhas sobre as tampas de lata… Um dia, subi para a cadeira e o mercado tinha-se ido embora. No resto dos meus primeiros anos nunca mais nada ali houve que valesse a pena observar, além da velha torre que só se “desacinzentava” com as procissões de Páscoa.
Talvez por excesso de zelo com a preservação, típica dos costumes locais, das pedras da recente calçada, talvez devido ao exíguo do lugar para um mercado que se queria maior, levaram barracas, caixas de sapatos e homens do lixo lá para as bandas do Torreão, lugar que, de tão privilegiado, tem sido sempre muito mal tratado. Talvez pela lama da antiga avenida ou pela proximidade dos animais, na encosta, pegaram outra vez em tudo e levaram o mercado para o campo de futebol (não havia cá “estádios”) e, desta vez através das janelas da sala 11, lá pude voltar a observar toldos a abrir de manhã e homens a recolher lixo à tarde. Por fim, se calhar porque se envergonhavam dele, arrumaram com o mercado quinzenal para a encosta onde, até hoje, me parece que tem definhado ao mesmo ritmo que o resto do centro da cidade.
Ora, ver tanto “talvez” ter vindo a ser contrariado por regressos periódicos do mercado ao centro da cidade é, por ventura, das raras decisões camarárias que me acalentam a alma de guardense. Não por um qualquer revivalismo que, de resto seria sempre bacoco, antes por entender que as coisas bem feitas, bem parecem. Então, não é muito mais agradável à vista e confortável para os pés calcorrear alamedas de barracas à volta de jardins do que a bordear bermas de alcatrão? Eu acho! Então, não é muito mais inspiradora a cidade habitada do que deserta? Eu acho! Assim como sou tentada a achar que decisões deste tipo são muito mais profícuas e baratas que espalhar bibelots, de gosto duvidoso, a preços astronómicos, pelas rotundas da cidade, mas essa conversa ficará para outro dia.
Hoje, prefiro divagar por outras ambições e imaginar que, por magia, nasce das mãos de um qualquer excelente arquiteto um centro multiusos em anfiteatro natural, diferente de todos os centros multiusos, já construídos, em qualquer parte, na encosta do mercado. A gente chegava e, lá do fundo, via aquela beleza… Os de cá haveriam de ter orgulho naquilo e os forasteiros haveriam de nos louvar o gosto e o jeito para acrescentar valor aos nossos barrocos. Uma coisa ficava garantida: o mercado quinzenal nunca mais ali se esconderia. Até porque, estou em crer, que estas “experiências” mercantis à volta de uns canteiros hão de, inevitavelmente, cativar guardenses e vizinhos. Que mais não seja, por os nossos domingos ficarem muito mais animados!