1. Ler um livro numa viagem de comboio de 4 horas e pouco não é coisa impossível mesmo se o livro tem 350 páginas. A escrita das memórias é leve. É assim que acontece com “Cebola crua com sal e broa”, tentativa memorialística de Miguel Sousa Tavares (MST). Não consegui acabá-lo na viagem mas cheguei aos dois terços. O que diz também algo sobre a maior capacidade que temos numa viagem de comboio de nos alhearmos da agitação da casa e de arranjar uma parcela de silêncio favorável à leitura. A solidão necessária, boa.
Quanto ao livro, quem viveu o 25 de abril e a transição para a democracia reconhece facilmente todas as temáticas: os dias da alegria reencontrada em 1974; a tentação comunista da hegemonia por via da rua, da ”reforma agrária” e da ação sindical; a resistência do PS e de Soares; o verão quente; o movimento europeu de apoio aos partidos democráticos e à “normalização”; a aparente indiferença e “bom-senso” da União Soviética ao não embarcar na ideia de uma “ilha soviética” no extremo ocidental da Europa. Finalmente a crítica contínua ao Estado que temos, empregador, mole e permissivo aos interesses e corporações. Mesmo nos tempos de Soares, que MST admirou.
Um livro de memórias é sempre em metade um livro sobre a realidade e na outra metade sobre quem viveu a realidade. Miguel Sousa Tavares concentra-se pouco na infância e juventude, de que refere apenas breves passagens: o “desterro” numa escola primária no Norte; o ensino liceal no Colégio São João de Brito (Lisboa), de que diz horrores; a normalização no Liceu Gil Vicente. Depois destaca a vivência de recusa do regime dos anos 60-70 na Faculdade de Direito, entre a extrema-esquerda e os “gorilas”. MST diz ter herdado esta capacidade de dizer “não” do seu pai, Francisco Sousa Tavares, fraco “gestor da casa” mas forte opositor tanto do regime de Salazar-Caetano como da deriva revolucionária de 1974-75, reconhecendo-lhe a «repulsa pela autoridade estabelecida» e uma «coragem inteletual, pessoal e física» incomparável. Da sua mãe (Sophia de Mello Breyner) recorda a presença segura de timoneira da casa, a ternura e a calma, apesar dos balanços contínuos. Quando num poema a mãe refere «Porque os outros caminham à sombra dos abrigos / e tu vais de mãos dadas com os perigos», MST garante que é ao pai que se refere.
O menos bom deste livro é o tom sempre um pouco arrogante, autoencomiástico e justificativo de MST, que continuamos a reconhecer em cada semana no “Expresso”. Para si próprio, MST é o cúmulo da coerência, da seriedade, da lisura, da transparência, da capacidade de viver sem tanto Estado. Vaidoso, o livro vai apresentando as vitórias sobre os poderes, a resistência à integração nos partidos, o combate contra os projetos autárquicos destruidores do sentido da cidade (ex. o Terminal de Contentores de Alcântara). Aqui e ali, no meio da sua autoglorificação de jornalista, uma pequena amargura de ter perdido a carreira de advogado ou de diplomata, mas sempre por iniciativa própria. Isto é: só não foi mais porque não quis. Acaba por revelar uma pequena “cunha” para entrar no “República” mas isso «não é nada». No resto da atividade de jornalista, sempre deixou lições a quem ficou. E o próprio título da obra dá a entender mais sacrifício na vida do que realmente um filho de classes médias suportou. Tiveste boa vida, Miguel.
2. Quando um admirador de Eça depara com um jovem que acaba de “recusar” a leitura de “Os Maias”, dando como desculpa a extensão da obra ou as longas descrições, a resposta só pode ser a liberdade de ler e a reprimenda da preguiça em nome de que “o que é bom não é dado”. Na verdade, em tempos de rejeição do livro, é preciso orientar a leitura do que não é imediato e apresentar caminhos para aquilo que não parece tão atrativo, atacando as desculpas. Eça não pode ser objeto de unanimidades, como no seu tempo o não foi também, mas este escritor tem ainda tanto para nos dizer…
Numa exposição sobre um escritor deste calibre aprende-se sempre mais qualquer coisa. É o caso de “Tudo o que tenho no saco – Eça e Os Maias”, até 18 de fevereiro na Fundação Gulbenkian. Para além de se tomar contacto com a “banda sonora” das peças musicais referidas na sua obra e com alguns objetos que a Fundação Eça de Queirós apresenta, a exposição vai alinhando também os objetos modernos em que a sua obra se transformou (filmes, séries e os quadros de Paula Rego a propósito de “O Crime do Padre Amaro”). Ao longo das seis secções irrompem, repetidos, o desejo de intervir no país, a recusa do romantismo, a atração pelo realismo, a fantasia sempre à espreita, a ironia como pedra de toque, o conflito entre a moral estabelecida e a vontade de infringir, os lugares percorridos por Eça no mundo. Em todos estes tópicos a evidência de Eça de que é preciso mostrar esta «vasta máquina» do mundo e que tem o “saco cheio” para contar.
Feliz ano 2019!
(“Cebola crua com sal e broa”, de Miguel Sousa Tavares; Exposição “Tudo o que tenho no saco – Eça e os Maias”, na Fund. Gulbenkian, até 18 de fevereiro)