Eduardo Jorge é tetraplégico. Cansou-se de ser tratado como alguém que é menos importante para o Estado do que tudo aquilo que o Estado decida fazer por ele.
No essencial, cansou-se que seja considerado normal que para ter alguém escolhido por si, para tratar de si, o Estado lhe entregue no máximo 93 euros, mas se estiver ao cuidado de terceiros, longe da sua casa, por exemplo, numa instituição, o Estado já pague mil euros à dita cuja. Não se trata, portanto, de uma questão de falta de dinheiro, apenas de uma escolha nossa. Trata-se de uma forma de ver o mundo.
E quando o Estado, perante tão evidente aberração, começa a ceder e a pensar na hipótese de talvez lhe entregar os tais mil euros e deixá-lo escolher se prefere estar numa instituição ou em sua casa, aos cuidados de quem quiser, o mesmo Estado começa a impor regras absurdas, como escolaridades mínimas e outras que tais.
Por isso, Eduardo Jorge resolveu fazer um protesto que, no limite, poderia colocar a sua vida em risco, à porta da Assembleia da República, até que os poderes públicos olhassem com sensatez para o seu problema. Lá apareceu Marcelo, no seu habitual “show” televisivo, levando consigo uma secretária de Estado. Os resultados práticos foram nulos, como de costume. António Costa não apareceu, tal como sempre faz nestas circunstâncias. Ferro Rodrigues, na sua irrelevância, manteve-se assim mesmo, irrelevante.
O que verdadeiramente nos deveria preocupar resume-se a uma questão central: montar e aplicar um sistema de apoio à deficiência envolve centenas, quando não milhares de pessoas, desde técnicos, financeiros, decisores, etc.
Assim sendo, como é possível que nós todos, como sociedade, não sejamos capazes de produzir uma solução melhor, uma solução que entenda que mais importante do que a vontade do Estado em cuidar à sua maneira das pessoas diretamente interessadas, é a vontade própria dessas pessoas que necessitam de ajuda?
É verdadeiramente deprimente que seja precisa a imensa coragem de Eduardo Jorge para nos confrontar com o imenso conforto da nossa pequena cobardia, a cobardia de não levantarmos ondas, de não questionarmos os pequenos poderes instituídos no dia-a-dia, a cobardia e o comodismo que nos levam a aceitarmos coisas que qualquer pessoa de bem considera evidentemente inaceitáveis, só porque nos parecem pequenas e de menor importância quando comparadas com outros problemas mais generalistas.
Seríamos um país bem mais decente se fôssemos mais exigentes em casos como o do Eduardo; em casos como o de uma criança deficiente que não tem uma educação adaptada ou os cuidados de saúde de que precisa; em casos como os das pessoas idosas que não têm uma vaga num lar. Uma sociedade evoluída e madura preocupa-se muito mais com todas estas pessoas e problemas do que com os prémios de turismo, a entrada de animais nos restaurantes, os vencimentos dos jogadores de futebol, os “reality shows” ou o IVA das touradas.
A civilização consiste, por definição, numa realidade específica, num modelo de interpretação da história e da sociedade, num processo de transformações dos padrões sociais de autorregulação. Caminha rumo a uma direção específica, a algo que nos caracteriza e nos define aos olhos dos outros.
Eduardo conseguiu demonstrar como esse processo é não linear e como depende de impulsos e de contra impulsos alternados, de como o maior perigo para qualquer civilização é a inércia das estruturas. Conseguiu demonstrar como a civilização é, antes de mais nada, vontade de convivência. Mas, mais do que isso, conseguiu demonstrar como estamos condenados a ela e como precisamos de progredir para não desaparecermos. Em suma, Eduardo conseguiu demonstrar que as civilizações, quando não se adaptam, também sofrem de algum tipo de tetraplegia…