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Populismo e boçalidade

Jogo de Sombras

1. Só há populismo onde houver também estupidez, falta de clarividência e ausência de espírito crítico. Uma postura não sobrevive sem as outras. Populismo, em política, é dizer aquilo que o povo gosta de ouvir. Estupidez é aplaudir sem questionar. Ao povo, enfim, desculpa-se. Mas àqueles que agem em sua representação – que receberam, pelo voto, o seu mandato – há que exigir sensatez e perspicácia. Santana Lopes foi indigitado primeiro-ministro. Antes de o ser já falava ao país através da televisão. Está-lhe na massa. Foi eloquente e tentou convencer-nos da sua vocação congénita para o cargo. Mudou de semblante e deu ares de estadista, tentando fazer-nos esquecer o conquistador, o agitador, o rebelde, o animador de congressos, o criador de opinião. Mas, por entre as aparências, percebeu-se o mais genuíno traço de identidade: ele tem que estar sempre a falar, a gerar factos, a dizer coisas que os outros estão na expectativa de ouvir. Coisas interessantes. Coisas que dificilmente cumprirá. Na primeira entrevista falou na descentralização dos ministérios – a única ideia original que perpassou da conversa. Criticou a concentração dos órgãos de governo em Lisboa, louvou as potencialidades do e-government, anteviu conselhos de ministros por videoconferência e defendeu a distribuição de ministérios e secretarias de Estado por diferentes cidades, consoante a realidade – Agricultura em Santarém, Economia no Porto, Turismo em Faro. Trata-se do Túnel do Marquês da nova governação. Disse isto como dirá outras coisas simpáticas nos próximos dias, com que nos há-de surpreender. O problema não está no que diz, está no modo como outros reagem ao que diz. O presidente da Câmara de Santarém, socialista, quase prometeu tirar a camisola quando vir lá um ministério. O presidente da Região de Turismo do Algarve aclamou a transferência da tutela para junto de si. O presidente da Associação das Agências de Viagens exigiu que ela continue em Lisboa. O presidente da Câmara de Viseu anunciou que, a ser assim, também quer ficar com o ministério das Cidades. E o tema ainda só tem, no momento em que escrevo, um dia e meio de vida. É disto que vivem os populistas: lançam achas para uma acalorada discussão em torno do embrulho e procuram que se ignore a substância das coisas. Não tarda – oxalá me engane, sinceramente – e teremos os políticos da Guarda a exigir um ministério ou uma secretaria de Estado, que mais não seja com o argumento recorrente de que “se Viseu quer, nós também temos direito”. Os mesmos – deputados, autarcas e dirigentes partidários de todos os quadrantes – que estagnaram esta cidade a anos-luz das outras, que deixaram fugir investimentos, que não se dão ao respeito, que fracassaram na maior parte das metas de desenvolvimento. Mas que não hesitarão um instante – repito: oxalá me engane – e cairão neste jogo ardiloso, reivindicando a Presidência do Conselho de Ministros para a Guarda, o Ministério do Ambiente para Manteigas ou o Ministério dos Negócios Estrangeiros para Vilar Formoso. Ou seja: vão fazer-nos passar mais vergonhas. Deus nos livre dos políticos populistas. Mas livre-nos, também, dos boçais e dos labregos.

2. Três semanas após a morte de Sousa Franco, Ana Manso embasbacou: escreveu ao «Expresso» na tentativa de explicar a atoarda com que abriu a campanha para as Europeias. Era de bom-tom que se mantivesse calada e quieta até que o caso abonançasse. Principalmente se lhe tivessem lido as declarações de Matilde Sousa Franco à «Grande Reportagem» de uma semana antes. O problema é que parece que o staff tem o hábito de lhe omitir ou deturpar as más notícias. E ela achou que se sairia menos mal se fizesse publicar um artigo com a sua própria versão dos acontecimentos e o intitulasse do modo mais incrível: “Eu e Sousa Franco”. A atitude é assombrosa, o título é extraordinário – mas o inacreditável vem no corpo do texto. Cito três passagens: “Tendo [ela, Ana Manso] um currículo profissional e político imaculado e sendo mãe de família e cidadã de integridade inabalável, só mentes torpes podiam achar que eu estaria a menorizar alguém intelectual ou fisicamente”; “Reafirmo que foram postas na minha boca afirmações que não correspondem ao que eu disse e muito menos ao que penso”; e “O único lenitivo desta mágoa é ter podido esclarecer o assunto com o Prof. Sousa Franco e recordar as suas palavras amigas. Também por isso, é maior a dor de ter perdido um amigo, ainda que, também, um elegante adversário político”. A distinta lata está à vista. O original sentido de oportunidade foi ter ignorado a entrevista anterior de Matilde Sousa Franco. A invulgar intuição foi não ter percebido – como a generalidade de nós perceberia – que a viúva não é senhora para se deixar ficar. No «Expresso» seguinte, Matilde chama mentirosa com todas as letras a Ana Manso. Diz que a deputada “teve o mau gosto de escrever uma carta ao meu marido, que ele nem teve paciência para abrir, mas que eu tive a infelicidade de ver no dia 9, poucos minutos antes da tragédia”. Ou seja: a insinuada troca de palavras entre Ana Manso e Sousa Franco nunca chegou a existir, nem por carta. Matilde lamenta que Ana tenha estado “calada enquanto o cavalheiro Professor João de Deus Pinheiro pedia publicamente desculpas por ela” e reconhece que o único facto que joga a favor da ex-candidata é “o adversário estar morto e não lhe poder responder”. Na carta ao «Expresso», Ana Manso assina como “Gestora Hospitalar e Deputada do PSD”. Oxalá poucos se lembrem de onde. Já temos vergonhas que nos bastem.

Por: Rui Isidro

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