Estou a escrever estas linhas na ressaca do Portugal – Espanha, em plena epidemia de auto-estima e febre patriótica que no espaço de minutos ocupou o país inteiro. Estou com tanta, mas tanta auto-estima, que não sei se aguento.
Este campeonato de futebol teve uma virtude: a acreditar nos jornais e nas televisões, a pedofilia foi um ar que lhe deu. O défice, a recessão, a crise, o desemprego, os salários em atraso, as deslocalizações, tudo isso terminou. A guerra no Iraque já acabou e reina uma magnífica paz por todo o próximo, médio, afastado e até mesmo no longínquo oriente. Prostituição infantil? Não há mais. Guerras e crises humanitárias? Não existem. Violência doméstica? Droga? Sida? Listas de espera? Corrupção? Meus amigos, tenho o grato prazer de vos anunciar que tudo isso acabou. Graças ao futebol, o mundo, o universo, vivem um idílico momento de paz, de quietude, de harmonia.
É que as coisas, como se sabe, só aconteceram se der na televisão. A televisão só dá futebol. Portanto, tudo o resto deixou de acontecer. Se não deu na têvê, não aconteceu.
Não consigo ver nesta epidemia de bandeirite, nada de nobre, nada de bom, nenhuma ideia que mereça perder tempo com ela. Só muito raramente as bandeiras são capazes de apelar ao melhor que há nas pessoas e esta vez não é uma dessas vezes. Uma bandeira pode ser um grito de liberdade e de independência, uma afirmação de inteligência e solidariedade perante uma agressão que nos ponha em causa. Não é o caso.
A bandeira não apela a nada daquilo que devia ser a nossa aposta: a criatividade, a inteligência e a excelência, a educação e a formação, a qualidade e a beleza, o progresso e o bem-estar. Nem sequer à ideia de solidariedade, pois este fervor patriótico tem uma afinidade especial pela supremacia nacionalista. O fair-play fica de fora. A bandeira não apela à arte ou à ciência mas sim à força e ao medo.
É apenas triste que esta energia e esta mobilização não resultem em nada de realmente importante, algo de que efectivamente nos pudéssemos orgulhar. É triste que isto em que acreditamos seja apenas isto, esta mobilização que em nada nos compromete e nada nos exige, senão enfrascar umas bejecas e ir buzinar para a rua.
Quando isto estiver impresso já se saberá o resultado do Portugal – Inglaterra, e das duas uma: ou a epidemia se agravou e estamos todos convencidos que D. Sebastião está de volta, que o Império vai ser restaurado, que somos os Masters of the Universe e estamos já preparados para conquistar o mundo, ou então estamos de volta à nossa lusodepressão crónica e a malta apressou-se durante a noite a sacar as bandeiras das varandas, janelas e antenas dos carros, às escondidas, um pouco envergonhados dos fulgores patrioteiros dos últimos dias. E a culpar o governo pela derrota.
Por: Jorge Bacelar