Arquivo

Se bem me lembro

Corta!

Ainda nem uma hora passou desde que acabei de ver «Eternal Sunshine of the Spotless Mind», simplificado para português como «Despertar da Mente». Habitualmente, por preguiça ou afazeres vários, passam alguns dias até que decida escrever sobre um filme. As ideias vão chegando e aconchegando-se. A memória amadurece e concentra-se no que realmente importa, esquecendo o acessório. As emoções, tantas vezes difíceis de controlar, adormecem e perdem alguma da sua rebeldia. Talvez não seja o mais correcto método, mas cada um lá terá o seu.

Mas hoje, e depois de um filme como este, as emoções não se querem domadas, a memória deseja-se ainda em ferida e as ideias e sensações que se cruzem, atropelem e, se tal for necessário, se anulem, abracem ou bulhem até à exaustão. Escrito por Charlie Kaufman, que já nos ofereceu, entre outros, os sempre entusiasmantes «Queres ser John Malkovich?» ou «Inadaptado», é fácil também aqui encontrar a marca do seu autor. O cérebro continua a ser o ponto de partida. A realidade e ilusão fazem parte de um todo sem barreiras. Os personagens entram numa e saem noutra sem que qualquer fronteira nos seja mostrada. Senhoras e senhores, preparam-se para o bizarro!

Jim Carrey é Joel. Kate Winslet é Clementine. Que um dia se tenham conhecido e apaixonado é coisa desde sempre vista no cinema. É o famoso «boy meets girl», talvez a fórmula que mais filmes já originou até aos dias de hoje. Mas o que aqui encontramos é antes um «boy forgets girl». Ou tenta-se que assim seja. Uma empresa fornece aos seus clientes a possibilidade de apagarem da sua memória quem quer que seja. Desde o ex-namorado ao adorado cão que morreu atropelado. Como a traição é dor difícil de aguentar, Joel decide apagar Clementine da sua vida. Apagar mesmo. Totalmente. Literalmente.

Numa enorme introdução, de quase vinte minutos, em que tudo nos parece estranho, desadequado, e onde algo não bate certo, «Despertar da Mente» traça desde logo o mapa da história de amor que se nos prepara para ser contada. Aqui, por esta altura, não é de estranhar que um filme como «About Schmidt» nos venha à memória.

Para alguns, onde me incluo, Jim Carrey é, sem margens para dúvidas, um dos mais interessantes actores dos últimos anos, e certamente um dos mais injustamente esquecidos quando chega a hora de fazer contas e listas, culpa de meia dúzia de trabalhos, logo os mais visíveis, que o transformaram, aos olhos do grande público, em palhaço cheio dos mesmos tiques exagerados com pouca ou nenhuma piada. Mas bastariam «Man on the Moon» ou «Truman Show» para provar o contrário. E agora «Despertar da Mente», com uma interpretação atenta e preocupada com os mais ínfimos pormenores. Ter uma Kate Winslet em estado de graça só ajuda a que tudo pareça mais perfeito.

Há realmente amores demasiado grandes para serem vividos apenas uma única vez. Quando já todos os limites foram atingidos há que iniciar tudo de novo. Esquecer. Esvaziar. Espécie de «Querida Encolhi os Miúdos» para intelectuais, ou gente graúda, mergulhado numa linguagem de videoclip por culpa do passado (e presente) do seu realizador, «Despertar da Mente» é no entanto no universo de Frank Capra que mais parece ir buscar referências. Quem, nem que por breves momentos, não se lembrou de «Do Céu Caiu Uma Estrela», ao ver este filme de Michel Gondry? Carrey nunca se pareceu tanto com James Stewart e até Winslet se parece com uma versão em várias cores de Donna Reed.

Sei que tudo está ainda demasiado quente na minha memória, mas, ainda assim, arrisco dizer que esta é já uma das mais belas histórias de amor deste ano, e talvez de muitos. Frank Capra teria adorado!

Por: Hugo Sousa

cinecorta@hotmail.com

Sobre o autor

Leave a Reply